Diabetes mellitus (DM) compreende um grupo de condições com a manifestação comum de elevação de glicemia (hiperglicemia) sustentada ao longo do tempo. A partir desta definição, pode-se compreender que DM não é uma doença única, mas sim a manifestação comum de diferentes processos fisiopatológicos.
Assim, do ponto de vista de mecanismo de doença, pode haver redução da secreção de insulina ou comprometimento do seu efeito. Ou, descrito de forma alegórica e como a International Diabetes Federation representa, uma relação entre falta de produção da chave (insulina) para abrir a porta e permitir que a glicose entre nas células ou uma fechadura alterada atrapalhando o funcionamento da chave / insulina (Figura 1).
Figura 1. Comparação entre o funcionamento normal, DM tipo 1 e DM tipo 2.

Fonte: International Diabetes Federation.
Diagnóstico e tipos de DM
Como discutimos acima, a manifestação comum aos diferentes tipos de DM é a hiperglicemia e, portanto, existem critérios únicos para o diagnóstico de DM (Tabela 1); a única exceção é o DM gestacional que tem critérios e abordagem diagnóstica específicos.
Glicemia de jejum* | ≥ 126 mg/dL |
Teste de tolerância oral à 75g de glicose* | ≥ 200 mg/dL em 2 horas |
Hemoglobina A1c* | ≥ 6,5% |
Glicemia em horário aleatório, na presença de sintomas de hiperglicemia | ≥ 200 mg/dL |
* nestes critérios deve-se realizar a confirmação com (a) outro teste na mesma amostra (por exemplo glicemia de jejum e hemoglobina A1c), ou (b) repetição do mesmo teste em outra amostra.
Fonte: American Diabetes Association.
Apesar dos critérios diagnósticos comuns, em cada tipo de DM ocorre um problema diferente no processo que vai desde a produção da insulina até o seu efeito nas diferentes células do corpo (Figura 1). Os tipos mais comuns de DM são :
- DM tipo 2: é o tipo mais comum de DM. Há resistência a ação da insulina acompanhada de comprometimento da secreção do hormônio (relativa ou absoluta). O protótipo da doença é a presença de excesso de peso, acompanhada de inatividade física em pessoas com mais de 35-40 anos. Atualmente é comum o diagnóstico por exames de rastreamento (ver a seguir).
- DM tipo 1: ocorre a destruição das céulas beta pancreáticas, seja por mecanismo imune ou idiopático. Após um período subclínico em que o pâncreas consegue manter o controle glicêmico a depeito do dano, a doença costuma se apresentar com sintomas de hiperglicemia (poliúria, polidipsia, polifagia, perda ponderal - os 4 "Ps" do DM). O diagnóstico ocorre no final da infância e início da adolescência ou eventualmente no início da idade adulta.
- DM gestacional: em função das alterações metabólicas, com aumento da resistência a insulina, ocorre hiperglicemia relacionada a gestação. Este tipo de DM possui critérios diagnósticos específicos, diferentes dos usado para as outras situações. Nas gestantes recebendo este diagnóstico, deve-se buscar diferenciar DM gestacional do DM franco (tipo 1 ou 2) que não havia sido diagnosticado até a gravidez.
- Outros tipos de DM: além dos tipos mais frequentes acima apresentados, várias condições podem levar ao desenvolvimento de DM por mecanismos diversos. Por exemplo, entram neste item, os casos de DM monogênico (MODY e DM neonatal), DM relacionado à fibrose cística, DM pós-transplante, DM relacionado à endocrinopatias, entre outros.
Rastreamento e prevenção das complicações crônicas do DM
A hiperglicemia sustentada ao longo dos anosque ocorre no DM leva a complicações em diversos órgãos e sistemas. O DM está entre as principais causas de cegueira, doença renal crônica e amputações no mundo. Também é fator de risco maior para a ocorrência de doença aterosclerótica. Em função disso, existem recomendações de rastreamento para algumas dessas complicações mais frequentes:
- Para a identificação de dano renal, deve-se dosar albuminúria (ajustada para creatininúria) e estimar a taxa de filtração glomerular com dosagem da creatinina sérica. Pacientes sem alterações nos exames devem repetir a avaliação anualmente.
- Para avaliar o risco de amputação e de dano aos nervos periféricos, está recomendada a revisão de sintomas e exames da sensibilidade dos pés (incluindo o exame de monofilamento). Apesar de ser uma parte do exame físico frequentemente negligenciada, a simples inspeção dos pés já é suficiente para identificar lesões precocemente e minimizar o risco de amputações.
- Já a retinopatia diabética (causa frequente de cegueira em adultos) deve ser avaliada com exame de fundo de olho. Em pacientes com bom controle glicêmico e com uma primeira avaliação normal deve-se repetir a avaliação a cada 1-2 anos.
Em pacientes com DM tipo 2 o rastreamento de complicações deve iniciar no momento do diagnóstico; para aqueles com DM tipo 1, ele é realizado a primeira vez 5 anos após o diagnóstico.
Para prevenção destas complicações, as principais recomendações são diagnóstico precoce de DM (vide a seguir), controle adequado da hiperglicemia e dos outros fatores de risco associados (hipertensão, dislipidemia, controle do tabagismo). Além disso, em pacientes com dano renal inicial há indicação de uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina.
Manejo do DM2
Tratamento não farmacológico
A concepção mais atual do manejo não farmacológico do DM tipo 2 é de realizar educação na doença, com enfoque no auto-cuidado. Esta abordagem foca nos cuidados alimentares, controle do peso corporal e estímulo a realização de atividades físicas e também na compreensão sobre alvos de tratamento e prevenção de complicações.
Quanto aos cuidados alimentares e controle de peso, os dois principais pontos são criar uma abordagem individualizada, adaptada ao contexto do paciente (inclusive sócio-cultural) e com enfoque de perda de pelo menos 5% de peso em pacientes com sobrepeso ou obesidade (IMC ≥ 25 kg/m2). A composição de macronutrientes (carboidratos, lipídios e proteínas) da dieta pode ser modulada para as preferências do paciente e para os alvos de tratamento, uma vez que diferentes programas se mostraram capaz de controlar a glicemia e o peso. Ou seja, pode-se optar não alterar na proporção de macronutrientes ou por abordagem de redução de carboidratos ou de redução de gorduras. Tende-se a preferir redução do percentual de carboidratos e preferência por carboidratos com maior conteúdo de fibras (menor índice glicêmico). Isso significa aumentar o consumo de grãos, vegetais, legumes. Além disso, ajustes na dieta devem levar em conta o tratamento farmacológico, em especial o risco de hipoglicemia (usuários de sulfonilureias e insulina).
Atividades físicas devem ter um alvo mínimo 150 minutos por semana de intensidade moderada a vigorosa distribuídos em 3 dias na semana (ou mais). Atividades aeróbicas e resistência devem ser combinadas. Deve-se estar atento ao risco de hiper e hipoglicemia desencadeados pelo exercício naqueles pacientes com DM de maior duração e usuários de insulina. Outros aspectos relevantes do manejo não farmacológico são o controle do tabagismo, apoio psicossocial, atenção à doença mental, qualidade do sono e apoio de pares.
Tratamento farmacológico
O passo inicial do tratamento farmacológico do DM tipo 2 é a definição do alvo glicêmico do paciente. Esta abordagem visa adaptar o tratamento para o contexto de vida, saúde e social do indivíduo. Assim, pacientes com menor expectativa de vida, mais complicações, menor suporte social e do sistema de saúde devem ter alvos menos agressivos; a Figura 2 mostra uma abordagem esquemática para definição de alvo de hemoglobina A1c.
Figura 2. Definição de alvo glicêmico individualizado em pacientes com DM tipo 2.

Fonte: American Diabetes Association.
Quanto a escolha de medicamentos, a metformina é o medicamento preferencial para a maioria dos pacientes; ela é amplamente disponível, segura e eficiente. Sua maior limitação são os efeitos adversos gastrintestinais, que podem ser controlados com aumento de dose gradual e limitação da dose para a máxima tolerada pela pessoa.
Além da metformina, existe uma ampla gama de medicamentos orais e mesmo injetáveis. A classe mais antiga e conhecida é a das sulfonilureias, que tem boa eficácia glicêmica, mas expõem os indíviduas a risco de hipoglicemia. Lançados mais recentemente, temos os inibidores da enzima SGLT-2 e os análogos do GLP-1. Os inibidores da SGLT-2 são preferenciais em pacientes com cardiopatia isquêmica e insuficiência cardíaca; seus principais efeitos adversos são no sistema urinário (candidíase e infecção urinária) e desidratação. Já os análogos do GLP-1 são injetáveis diários ou semanais e recomendados são capazes de controlar a glicemia e promover perda ponderal. Assim são indicados para indivíduos com excesso de peso e eventos cardiovasculares prévios. As limitações desta classe são o custo elevados, os efeitos gastrintestinais (náuseas e vômitos principalmente) e o uso injetável subcutâneo.
Por fim, dentro do tratamento medicamentos, a insulina costuma ser usada em pacientes que falham às opcões de tratamento anteriores. Deve-se lembrar de dois aspectos quando se está considerando a terapia com insulina. O primeiro é que a perda de massa de células beta pacreáticas é evento esperado na história natural do DM tipo 2. Dessa forma, é esperado também a necessidade de uso de insulina em uma fração significativa dos pacientes. O segundo aspecto é que não se deve utilizar a insulina como "ameaça" para estimular a otimização do tratamento; isso pode promover resistências ao seu uso quando ele for necessário.
Na maioria das pessoas, insulina basal (em uma ou duas aplicações ao dia) é suficiente para o controle glicêmico. Apesar disso, com a evolução da doença, pode ser necessário acrescentar insulina rápida (insulina regular ou análogos, como lispro e glulisina). Ou seja, pacientes em uso de insulina basal que seguem fora do alvo glicêmico individualizado são os principais candidatos ao uso insulina de ação rápida antes das refeições. Outros critérios para uso são estar com dose de insulina >0,5 UI/kg, hiperglicemia maior no final do dia e hiperglicemias pós-prandiais. A dose inicial costuma ser de 4 UI ou 10% da dose total de insulina em uso; aumentos posteriores são realizados paulatinamente (1-2 UI ou 10-15% a cada 2-3 dias).
Rastreamento
Há recomendação de rastreamento de DM tipo 2 em adultos assintomáticos. Infelizmente, não há ensaio clínico randomizado definitivo comprovando que essa intervenção populacional previna eventos duros em longo prazo. Apesar disso, trata-se de uma recomendação de consenso seguindo os critérios utilizados para rastrear uma doença na população:
- DM é uma doença que tem alta prevalência populacional com impacto na qualidade de vida e mortalidade.
- Possui um período longo assintomático.
- Os testes diagnósticos são simples e amplamente disponíveis.
- Existe tratamento eficaz para a doença e para prevenção de suas complicações.
O primeiro passo para este rastreamento é a revisão de fatores de risco para DM (obesidade, história de DM gestacional ou síndrome dos ovários policísticos, sexo masculino, história familiar). Além disso, deve-se realizar rastreamento laboratorial a partir dos 35 anos em todos os indivíduos. Adultos com fatores de risco indica-se iniciar o rastreio laboratorial mais cedo. Pode-se escolher um teste entre (a) glicemia de jejum, (b) teste de tolerância oral a 75 g de glicose de 2 horas ou (c) hemoglobina A1c. Para indivíduos com rastreamento negativo, ele deve ser repetido em 3 anos.
Referências:
1. Rotinas em Endocrinologia. 2015. Artmed.
2. American Diabetes Association, Standards of Care in Diabetes—2023. Diabetes Care 2023, Volume 46, Supp 1.
3. Atlas IDF, 2013. Disponível em: https://www.idf.org/component/attachments/attachments.html?id=813.
4. Screening for type 2 diabetes mellitus. De Uptodate. Disponível em <https://www.uptodate.com/contents/screening-for-type-2-diabetes-mellitus>.