3 de Outubro de 2023 | 5 min de leitura

O processo transexualizador: aspectos legais e cobertura pelo SUS

A Portaria 2803, de 19 de novembro de 2013, redefine e amplia o processo transexualizador no SUS com o intuito de adequação ao gênero ao qual a pessoa se legitima. Assim, estabelece o cuidado à saúde da pessoa transexual no contexto de acolhimento na atenção primária à saúde e de encaminhamento à atenção especializada, a fim de que a hormonização cruzada e/ou cirurgia de redesignação sexual sejam devidamente assistidas.¹

Diante das demandas de saúde da população transexual, estão inclusos no processo transexualizador os serviços de hormonização cruzada (tanto clínica quanto pré-cirúrgica) e a cirurgia de redesignação sexual com assistência por equipe multidisciplinar no pré, trans e pós-operatório. A equipe multidisciplinar é composta por psiquiatra, endocrinologista, enfermeira(o), médica(o) clínica(o), psicóloga(o) e assistente social. Essa portaria também define o tempo mínimo de dois anos de acompanhamento pela equipe multidisciplinar como pré-requisito para a realização da cirurgia de redesignação sexual.¹

O cuidado para com a população trans é estruturado pela Atenção Básica, responsável pelo primeiro contato com o sistema de saúde, avaliações médicas e encaminhamentos; pela Atenção Especializada no Processo Transexualizador em nível ambulatorial, que inclui acompanhamento clínico, pré e pós-operatório e hormonização; e pela Atenção Especializada no Processo Transexualizador em nível hospitalar, realizando cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório. Todo o processo é acompanhado por equipes multiprofissionais.
Os procedimentos de hormonização são permitidos e realizados após os 18 anos, e os procedimentos cirúrgicos, somente após os 21 anos. 

De acordo com o Ministério da Saúde, os hospitais habilitados em Unidade de Atenção Especializada no Processo Transexualizador são: Hospital de Clínicas de Porto Alegre - Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Porto Alegre (RS), Hospital Universitário Pedro Ernesto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Rio de Janeiro (RJ), Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina/FMUSP, Fundação Faculdade de Medicina MECMPAS - São Paulo (SP) e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás/Goiânia (GO).

Processo de hormonização

A hormonização, ou terapia hormonal, visa a reduzir o nível hormonal endógeno e manter os níveis hormonais compatíveis com aqueles do gênero oposto, de forma a promover o surgimento de características sexuais secundárias do gênero desejado e amenizar as características sexuais secundárias do sexo biológico. Essas mudanças físicas visam a proporcionar bem-estar físico, mental e emocional.

O objetivo do tratamento hormonal na direção de homem transgênero é induzir virilização e clitoromegalia, produzir padrão masculino de crescimento dos pelos faciais e corporais, promover o aumento da massa muscular e cessar os ciclos menstruais. Com esta finalidade, administra-se testosterona em suas diferentes formulações. As apresentações mais frequentemente prescritas no tratamento dos homens trans são as injeções intramusculares de ésteres de testosterona de curta ou longa ação. O intervalo de administração das doses varia conforme a resposta clínica, com o nível hormonal atingido e com os efeitos adversos observados.

No caso da terapia hormonal feminizante, são utilizados hormônios estrógenos que, nas doses adequadas, bloqueiam a produção endógena de testosterona. Se houver dificuldade no bloqueio, também podem ser usados os chamados antiandrógenos, que agem modificando várias partes do corpo que são sensíveis a estes hormônios, ou seja, com uso contínuo, a mulher trans desenvolve os caracteres sexuais secundários típicos da puberdade, como o aumento de mamas, a redistribuição de gordura e a redução de pelos. Os estrógenos podem ser administrados por via oral, transdérmica (aplicação na pele) ou podem ser injetados, enquanto os antiandrógenos podem ser orais ou injetáveis. As alterações físicas normalmente começam a surgir após dois ou três meses de tratamento, e as mudanças esperadas no corpo podem ocorrer em cerca de dois anos.

A restrita experiência dos serviços de saúde que lidam com a transexualidade feminina constitui evidência sobre o intenso sofrimento dessas pessoas ao não se reconhecerem no corpo biológico. Esta situação leva a diversos distúrbios de ordem psicológica acompanhados de tendências à automutilação e ao suicídio. 

Vias cirúrgicas de transexualização

As vias cirúrgicas de transexualização incluem, além do acompanhamento pré-operatório de dois anos e pós-operatório de um ano, as cirurgias a seguir: 

Processo transexualizador feminino

  • Orquiectomia bilateral com amputação do pênis e neocolpoplastia (construção de neovagina);
  • Tireoplastia (cirurgia de redução do Pomo de Adão com vistas à feminilização da voz e/ou alongamento das cordas vocais no processo transexualizador);
  • Plástica mamária reconstrutiva bilateral incluindo prótese mamária de silicone bilateral no processo;
  • Cirurgias complementares tais como: reconstrução da neovagina realizada, meatotomia, meatoplastia, cirurgia estética para correções complementares dos grandes lábios, pequenos lábios e clitóris e tratamento de deiscências e fistulectomia.

Processo transexualizador masculino

  • Mastectomia simples bilateral (ressecção de ambas as mamas com reposicionamento do complexo aréolo-mamilar);
  • Histerectomia com anexectomia bilateral e colpectomia (procedimento cirúrgico de ressecção do útero e ovários, com colpectomia);
  • Cirurgias complementares tais como: reconstrução da neovagina realizada, meatotomia, meatoplastia, cirurgia estética para correções complementares dos grandes lábios, pequenos lábios e clitóris, e tratamento de deiscências e fistulectomia.

Leia também: Terapia hormonal para pessoas trans

A implementação do processo transexualizador no SUS, que regulamenta os procedimentos para a readequação cirúrgica genital, insere-se no contexto da política LGBT e o desafio é garantir o acesso a todas as pessoas que necessitam dessa forma de cuidado. Outro grave problema para a saúde de transexuais e travestis é o uso indiscriminado e sem orientação de hormônios femininos. Há reconhecida relação entre o uso de hormônios femininos e a ocorrência de acidente vascular cerebral, flebites, infarto do miocárdio entre outros agravos, resultando em mortes ou sequelas importantes. Da mesma forma, os transexuais masculinos demandam acesso aos procedimentos de mastectomia e de histerectomia. A automedicação normalmente realizada com doses elevadas de hormônios masculinizantes é também um agravante no quadro de saúde dessas pessoas.

Tendo em vista a política de saúde LGBT, verifica-se que os avanços ocorrem, ainda que de forma lenta, no que diz respeito a direitos de uma forma geral, tais como a retificação de documentos sem precisar do aval judiciário e de acesso à saúde, destacando-se a retirada do transtorno de identidade de gênero do CID-11, e no que diz respeito ao acesso ao cuidado, que deve ser ofertado por todos os profissionais de saúde e unidades de saúde, livre de preconceito e com o acolhimento que todas as pessoas merecem e têm direito.

Referências:

1 - Ministério da Saúde. PORTARIA Nº 2.803, DE 19 DE NOVEMBRO DE 2013(*). Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html.

2 - Rede Humaniza SUS. Andrade, Gabriela. O Processo transexualizador do SUS e a aplicação dos Princípios da PNH. Disponível em: https://redehumanizasus.net/o-processo-transexualizador-do-sus-e-a-aplicacao-dos-principios-da-pnh/

3 - SANTOS, C.G.P. Saúde. Completo bem-estar psicossocial de um indivíduo: tudo que uma pessoa trans não possui. In: Transexualidade e travestilidade na saúde. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Brasília: Ministério da Saúde, 2015, p. 17-24.

4 - COLEMAN, E. et al. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. World Professional Association for Transgender Health (WPATH):7ª versão, 2012


NP

Natássia Pinho

Enfermeira formada pela UFRJ. Especialista em Saúde Mental. Pós-graduanda em Saúde da Família. Enfermeira RT de Caps Ad.