23 de Outubro de 2023 | 9 min de leitura

Cetoacidose diabética na pediatria

A cetoacidose diabética pediátrica (CAD, ou DKA em inglês para diabetics ketoacidosis) é uma condição rara e crítica que exige uma abordagem meticulosa e multifacetada por parte dos profissionais de saúde.

O manejo pode ser dividido em dois tempos: 

  • Diagnóstico da cetoacidose e tratamento de emergência - fase em que há risco imediato de vida, e que todo pediatra pode se confrontar no pronto atendimento ou mesmo no consultório
  • Manejo da diabetes: com objetivo de diminuir sequelas de longo prazo assim como de prevenção de episódios subsequentes de CAD.

Na emergência, a CAD exige calma: apesar da gravidade, todas as reposições deve ser feitas com calma, para permitir uma volta gradual do paciente ao metabolismo normal. Hidratação na primeira hora em volumes controlados não como na sepse grave; monitorização e reposição de eletrólitos; insulina em doses baixas até controle adequado, com eventual reposição de glicose associada (o problema do quadro não é a hiperglicemia em si, mas todo o desequilíbrio metabólico que será corrigido com a insulina, e para dar insulina pode ser necessário dar glicose junto, assim como potássio, e hidratação).

Este artigo é uma apresentação do quadro, não é e não se pretende um guia para o tratamento da CAD. Para o tratamento é necessário ter e seguir protocolo rigorosamente, o que não é o escopo deste texto.

Etiologia e epidemiologia

Deficiência de Insulina: A CAD é uma complicação grave das diabetes que cursam com redução ou ausência de produção de insulina: na pediatria, principalmente a Diabetes do tipo 1. Além de um primeiro episódio que pode ser o momento do diagnóstico de diabetes na criança, a CAD pode ser causada por omissão de doses de insulina, falha do equipamento automático (bomba de infusão), aumento importante da ingesta de açúcares ou aumento da demanda de insulina devido a estresse, como infecções, traumas, cirurgias e algumas medicações.

Prevalência: A CAD pode ser a primeira manifestação de DM1 em até 80% das crianças.

Fatores de Risco: Incluem idade mais jovem, menor duração da doença, e falta de acesso a cuidados de saúde adequados.

Patofisiologia da CAD

Hiperglicemia: A deficiência de insulina e o aumento concomitante de hormônios contrarreguladores (como glucagon, cortisol, catecolaminas e hormônio do crescimento) resultam em hiperglicemia. Mas, pela ausência de insulina, há déficit de glicose intracelular, gerando desequilíbrio metabólico e acidose, assim como uma desidratação das células, por desequilíbrio oncótico.

Cetogênese: A lipólise não inibida leva à produção excessiva de corpos cetônicos, resultando em cetose e, eventualmente, acidose metabólica.

História clínica e exame físico

História clínica

A coleta de uma história clínica detalhada é crucial para entender os eventos que levaram à CAD. Inicialmente, perguntas sobre aumento de volume urinário (poliúria), aumento de ingesta alimentar (polifagia) e aumento de ingesta hídrica (polidipsia) são fundamentais para nos sugerir esse caminho. Por vezes há relato de formigas na fralda jogada no lixo (pela presença de glicose na urina), ou no vaso, por exemplo, ou crianças já desfraldadas que voltam a apresentar diurese na cama ou escapes frequentes ao longo do dia.

Para os pacientes préviamente diabéticos, além da tríade clássica de poliúria, polidipsia e polifagia, perguntas sobre a adesão ao regime de insulina, episódios recentes de doença ou infecção, e histórico de ingestão alimentar e padrões de sede podem fornecer insights valiosos sobre os possíveis gatilhos do episódio atual de DKA.

Exame físico

- Apresentação Clássica: Pacientes podem apresentar poliúria, polidipsia, perda de peso, vômitos, dor abdominal e, em casos graves, alterações do estado mental e desidratação.

 - Avaliação da Desidratação: A avaliação do estado de hidratação, incluindo a verificação de sinais vitais (como frequência cardíaca e pressão arterial) e sinais clínicos de desidratação (como turgor da pele e enchimento capilar), é vital: a diferenciação entre paciente com e sem choque hipovolêmico é central para o início da condução do quadro.

- Exame Neurológico: A avaliação do estado mental e a procura por sinais de edema cerebral, são cruciais: o paciente com alteração de nível neurológico pode tê-lo já na chegada, por hipoglicemia intracelular (apesar de hiperglicemia no sangue, a falta de insulina não leva essa glicose para a célula, e os neurônios são das células que mais sofrem sem essa via metabólica). Mas pode também desenvolver as alterações, principalmente por edema cerebral. Isso pode ocorrer com uma hidratação rápida demais (por isso, a exceto no paciente chocado, o volume deve ser reposto com calma, seguindo os protocolos).

Avaliação

Critérios Diagnósticos:

  - Hiperglicemia: glicose sanguínea >200 mg/dl.

 - Acidose: pH venoso <7.3 ou bicarbonato sérico <15 mmol/L.

 - Cetonemia: cetonúria moderada a grande (maior ou igual a 2+).1

Demais Exames Laboratoriais:

- Iniciais: Glicemia, eletrólitos séricos, gasometria venosa, ureia e creatinina, hemograma completo, urina tipo 1 (especialmente para avaliar glicosúria e cetonúria). Ainda, hemocultura, proteínca C reativa ou outras provas de inflamação, são importantes para diferenciar de sepse ou complementar o diagnóstico, já que a sepse pode ser o evento desencadeante.

- Monitoramento: Glicemia capilar a cada 1-2 horas, eletrólitos séricos a cada 2-4 horas, e gases sanguíneos conforme o protocolo da instituição.

  - Outros: Hemoglobina A1c pode ser útil para confirmar o diagnóstico de diabetes ou indicar a duração da hiperglicemia. Autoanticorpos podem ajudar no diagnóstico de DM1, em caso de dúvidas. Exames de imagem podem ser úteis se nõa houver melhora do nível de consciência depois do tratamento inicial. 

Tratamento da cetoacidose diabética pediátrica

A CAD deve ser tratada rigorosamente de acordo com o protocolo de cada instituição. Esse protocolo deve ser elaborado levando em conta as insulinas disponíveis, o tempo para o resultado dos exames, a disponibilidade e o tempo para internação em UTI, a experiência da equipe com emergências desse tipo e a retaguarda para casos que evoluam com piora e necessidade de suporte ventilatório e droga vasoativa. Aqui, recomendamos como bases os guias da ISPAD e da SBD e deixamos duas referências de protocolos.

1. Alocação

É um paciente para ser tratado na sala de emergência, com monitorização contínua de pressão arterial, frequencia cardíaca, frequência respiratória, saturação periférica de oxigênio, nível neurológico e gliemia. É um paciente grave com risco de morte.

2. Terapia de fluidos

 - Objetivo: Corrigir a desidratação, melhorar a perfusão e eliminar cetonas. Se chocado, corrigir a hipovolêmia.

   - Droga: inicialmente, 10 a 20ml/kg, na primeira hora de tratamento (não em 20 minutos, a exceto que paciente chocado)

   - Monitoramento: Acompanhar sinais vitais e estado de hidratação para evitar sobrecarga hídrica, especialmente em pacientes com risco de edema cerebral.

3. Reposição de eletrólitos

   - Potássio: a avaliação deve ser feita antes da aplicação de inslulina. Há risco de distúrbios graves de potássio. A insulina causará um shift intracelular de potássio, causando queda no nível sérico do eletrólito, sendo então comum prescrever uma reposição de potássio pré-insulinização, ou uma monitorização rigorosa do quadro. Não deve ser prescrito biacarbonato, a exceto em casos específicos.

   - Fosfato: a hipofosfatemia leve é comum e assintomática, não necessitando tratamento específico, devendo apenas manter monitorização dos níveis de fosfato e repor em casos de manifestações clínicas graves. 

4. Insulinoterapia

   - Tipo de Insulina: Regular (solúvel).

   - Dose: 0.05–0.1 U/kg/h, com dosagem inferior (0.05 U/kg/h) considerada para crianças com pH > 7.15.

   - Via de Administração: Intravenosa (IV), sem uso de bolus inicial para evitar choque e exacerbação da hipocalemia.

   - Alternativas: Insulina subcutânea (SC) de ação rápida (insulina lispro ou insulina aspart) em circunstâncias específicas.

Não é demais ressaltar que é fundamental manter monitorização da glicemia no mínimo a cada hora, para evitar hipoglicemia ou quedas muito abruptas, sendo indicada reposição de glicose se queda abrupta, com eventual diminuição na dose da insulina (evitar ao máximo suspensão completa, afinal, é a insulina que vai reestabelecer o metabolismo normal).

Complicações e gravidade

A CAD, embora tratável, pode levar a complicações sérias se não for adequadamente gerenciada. As seguintes são as complicações mais comuns e graves associadas à CAD:

  1. Edema Cerebral: Esta é uma das complicações mais temidas da CAD. Pode ocorrer tanto no início do tratamento quanto após várias horas. Os sintomas incluem dor de cabeça, diminuição do nível de consciência, hipertensão, bradicardia e postura anormal. A monitorização neurológica rigorosa é essencial, e a suspeita de edema cerebral exige intervenção imediata, incluindo medidas para reduzir a pressão intracraniana e possível transferência para uma unidade de terapia intensiva.
  2. Hipocalemia: A terapia com insulina e a correção da acidose podem levar a um rápido deslocamento do potássio para as células, resultando em hipocalemia. Esta condição pode ser fatal e manifestar-se por arritmias cardíacas. A monitorização e reposição adequadas de potássio são vitais durante o tratamento da CAD.
  3. Hipoglicemia: Embora o objetivo do tratamento seja corrigir a hiperglicemia, a terapia com insulina pode resultar em uma queda rápida dos níveis de glicose no sangue, levando à hipoglicemia. Esta condição pode ser perigosa, especialmente para o cérebro, e requer monitoramento rigoroso da glicemia.
  4. Hipofosfatemia: A terapia com insulina pode causar um deslocamento intracelular de fosfato, levando à hipofosfatemia. Embora a reposição de fosfato não seja rotineiramente recomendada, pode ser necessária em casos de hipofosfatemia grave.
  5. Acidose Metabólica: A acidose pode persistir mesmo após a correção da hiperglicemia. Isso pode ser devido à produção contínua de corpos cetônicos ou à lise celular. A monitorização contínua dos gases sanguíneos é essencial para garantir a resolução da acidose.
  6. Complicações Associadas à Doença Desencadeante: Muitas vezes, um evento desencadeante, como infecção, pode levar à CAD. Essas condições subjacentes também podem ter suas próprias complicações e devem ser tratadas concomitantemente.

A identificação precoce e o tratamento adequado dessas complicações são cruciais para melhorar os desfechos dos pacientes com CAD.

Resolução

Consideramos que o paciente está com o quadro de CAD resolvido, e mantendo então apenas uma descompensação de DM1, quando:

  • Glicemia < 200mg/dL
  • pH sérico > 7,3 e bicarbonato sérico > 18 mEq/L
  • Ânion Gap < 12 mEq/L
  • Resolução da cetonemia (quando disponível exame1). Resolução da cetonúria não é critério de resolução da CAD.

Diagnósticos diferenciais

A DKA pode mimetizar outras condições, como gastroenterites e sepse, tornando essencial a identificação e gestão de condições desencadeadoras, como infecções, para uma resolução bem-sucedida da DKA.

Outras causas de cetose podem ser jejum prolongado ou cetoacidose alcoólica, muito mais rara na pediatria. Há ainda as causas de acidose com anion gap aumentado (acidose lática, especial atenção aos usuários de metformina, toxicidade da aspirina, toxicidade por paracetamol e envenenamento por metanol ou etilenoglicol).

Conclusão

Este texto mostrou as linhas gerais do manejo da CAD na emergência. Para um guia mais preciso, há os materiais da Sociedade Brasileira de Diabetes, da Sociedade Brasileira de Pediatra, da ISPAD - International Society for Pediatric and Adolescent Diabetes, e os exemplos do Canadá, da BSPED - British Society for Pediatric Endocrinology and Diabetes, do HC de Ribeirão Preto, para mostrar o quão complexo é o protocolo e como deve ser seguido à risca.

Na emergência, é fundamental lembrar alguns pontos:

- O objetivo não é baixar a glicemia, mas reestabelecer o metabolismo adequado, com resolução da acidose também e é a insulina que fará esse papel.

- O paciente está gravemente desidratado, mas essa reposição volêmica deve ser feita com quanta calma for possível, para evitar edemas associados à reposição, especialmente edema cerebral, que é das principais causas de morte na CAD.

- O maior risco na CAD está até que o diagnóstico seja feito. Uma vez feito o diagnóstico, avaliados potássio sérico, iniciada reposição se indicada, hidratação lenta e continua EV (10 a 20ml/kg/hora), procedida a insulinoterapia a partir da primeira hora de tratamento, e mantido controle rigoroso de potássio, glicemia, sódio, função pulmonar e cardíaca, o paciente deve evoluir bem.

Não é do nosso escopo, mas a orientação de pais, familiares, paciente, escola, sobre a diabetes, como evitar descompensação, sinais precoces de descompensação, entre outros, é fundamental como prevenção da CAD.

A gestão da CAD em pediatria é uma jornada que vai além da correção da hiperglicemia e acidose. A aplicação individualizada das diretrizes, como as da ISPAD e BSPED, é fundamental para oferecer o melhor cuidado possível a nossos pacientes com CAD, integrando ciência e humanidade na prática médica.


Referências:

1. Wolfsdorf JI, Glaser N, Agus M, et al. ISPAD Clinical Practice Consensus Guidelines 2018: Diabetic ketoacidosis and the hyperglycemic hyperosmolar state. Pediatr Diabetes. 2018;19 Suppl 27:155-177.

2. BSPED. BSPED Recommended DKA Guidelines. British Society for Paediatric Endocrinology and Diabetes. 2020.

3. HCRP. Protocolo de Cetoacidose Diabética. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. [Online]. Disponível em: https://protocolos.hcrp.usp.br/exportar-pdf.php?idVersao=806.

4. SBD. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes 2019-2020. Sociedade Brasileira de Diabetes. [Online]. Disponível em: https://diretriz.diabetes.org.br/diagnostico-e-tratamento-da-cetoacidose-diabetica/.

Notas:

1 - Em outros países, beta-hidroxibutirato no sangue >3 mmol/L, mas mesmo nos hospitais mais modernos do Brasil esse exame não fica pronto em tempo hábil para o diagnóstico e tratamento de DKA


RC

Ricardo Costa

Médico pediatra formado pela FMUSP, com residência na mesma instituição. Preceptoria na enfermaria de alta complexidade, com ligação com ensino e produção de conteúdos desde então e experiência clínica em emergências pediátricas.