3 de Outubro de 2023 | 9 min de leitura

Colonoscopia para o rastreamento de câncer colorretal

O câncer colorretal (CCR) é a terceira neoplasia mais comum no Brasil, sendo que, a cada ano são 45 mil novos diagnósticos e 20 mil mortes por esta doença. A maior parte dos casos de CCR é relacionada à progressão de pólipos adenomatosos para neoplasia; progredindo em uma sequência de lesões pequenas (<8 mm), grandes (>8 mm), displasia até o carcinoma propriamente dito. Estima-se que, na maioria das pessoas sem síndromes familiares de neoplasia ou outras condições predisponentes (doença inflamatória intestinal), esse processo demore 10 anos para ocorrer.

O rastreamento (em inglês, screening) do CCR se justifica por essa ser uma neoplasia frequente e com um período de instalação longo, bem como no fato de existirem exames com boa acurácia para sua detecção. Além disso, quando diagnosticado precocemente, tem melhor prognóstico e tratamento mais simples e menos mórbido. Como veremos a seguir, de uma forma geral, as evidências científicas parecem corroborar com esse racional, apesar de algumas controvérsias.

Eficácia e recomendações de rastreamento do câncer colorretal

A colonoscopia é uma das alternativas entre outros exames disponíveis para este screening. Assim, é comum que os textos considerem as evidências para rastreamento agregando os diferentes exames disponíveis. Apesar disso, a colonoscopia é frequentemente considerada o exame preferencial porque dispensa investigações adicionais e porque pode ser realizada com menor frequência (a cada 10 anos). Se optado por outra estratégia inicial de rastreio (ver Outras ferramentas de rastreamento), a colonoscopia poderá ser necessária para complementar a investigação se o primeiro exame der alterado (localizar a lesão e excisão ou biópsia). 

Apesar de ser a técnica preferencial, os principais estudos que avaliam sua eficácia são observacionais e de simulação, baseando-se em dados de outras técnicas de rastreamento. Um ensaio clínico recente realizado no norte da Europa mostrou que é possível realizar rastreamento populacional com essa ferramenta por meio de convites enviados pelo correio. É interessante notar que a taxa de resposta ao convite foi menor que 50%, e, mesmo assim, identificou-se redução de morte por CCR no estudo. Isso indica que, se realizado por todos os pacientes com indicação, o benefício do exame é potencialmente maior; e, por outro lado, que a aceitação dos indivíduos é um fator limitante para essa estratégia.

Utilizando dados de simulação, o USPFTF estima que, para cada 1000 indivíduos rastreados entre os 45 e 75 anos (com diversas técnicas, incluindo colonoscopia), aproximadamente 300 anos de vida seriam ganhos, e 50 casos e 25 mortes por CCR seriam evitadas. Por outro lado, uma análise recente mais conservadora identificou que o tempo total de vida ganho atribuível ao rastreamento de CCR é pequeno (pouco mais de 100 dias, considerando a sigmoidoscopia) ou mesmo inexistente. Essa ausência de benefício está relacionada ao fato de que a fração de todas as mortes causadas pelo CCR na população em geral é menor que 5%.

Em suma, trata-se de um assunto em discussão na literatura, especialmente considerando o benefício global e custo populacional da intervenção. Apesar desse aparente paradoxo, o rastreamento de CCR para pessoas entre 50 e 75 anos é uma intervenção que tende a ser recomendada por diversas sociedades, desde que haja disponibilidade de recursos no sistema de saúde para investigação e manejo dos exames identificados como alterados. No contexto do Sistema Único de Saúde brasileiro, recomenda-se que sejam “priorizadas ações de diagnóstico precoce e abordagem personalizada para o grupo de alto risco. O Brasil apresenta diferentes realidades epidemiológicas e de redes de saúde e ainda são necessários estudos para subsidiar a análise de viabilidade da introdução do rastreamento nos diversos contextos.” (Referência 7). Para fins de comparação, o sistema de saúde britânico recomenda rastreamento de CCR com teste fecal imunoquímico para pacientes entre 60 e 74 anos.

Como realizar rastreamento de câncer com a colonoscopia

O primeiro passo para realização do rastreamento é a discussão do assunto com o paciente e a definição se ele é de risco basal ou possui algum fator que o coloca em risco elevado de neoplasia de cólon. Na discussão do rastreamento, deve-se lembrar dos riscos do rastreamento, em especial perfuração que ocorre em 8 a cada 10 mil pacientes rastreados com colonoscopia e em 3 a cada 10 mil rastreados com sangue oculto nas fezes.

Pacientes e familiares com síndrome de Lynch, poliposes familiares (adenomatosa, juvenil) e pacientes com história prévia de CCR, retocolite ulcerativa e que foram expostos a radioterapia abdominal da infância têm recomendações específicas. Além dessas condições, deve-se investigar a história familiar de CCR a partir dos 20 anos e repetir a cada 5 anos essa avaliação - novos fatores podem surgir nas famílias e colocar o paciente em questão em maior risco de desenvolver neoplasia. A presença de qualquer uma das situações apresentadas na Tabela 1 em familiar de primeiro grau (pais, irmãos, filhos) indica um risco mais elevado e as indicações de rastreamento são mais agressivas (vide Pacientes de maior risco a seguir). Um aspecto relevante é que, se a história familiar for pouco consistente (não souber precisar ou documentar qual o tipo de pólipo), deve-se realizar a abordagem geral e não considerar o paciente de risco elevado.

Tabela 1. Fatores da história familiar que indicam maior risco de desenvolver câncer colorretal. Referência 5.

Câncer colorretal
Adenoma com ≥1 cm
Adenoma com displasia de alto grau
Adenoma com elementos vilosos
Pólipo séssil serratil com ≥1 cm
Pólipo séssil serratil com displasia
Pólipo serratil tradicional com ≥1 cm

Para pacientes de risco basal, deve-se iniciar o rastreamento aos 50 anos e segui-lo até os 75 anos. O rastreamento pode ser iniciado aos 45 anos, mas as evidências para essa recomendação são mais fracas. O exame é realizado por médico com treinamento específico e com sedação na maior parte dos centros. O principal desconforto com o exame é a necessidade de afastamento do trabalho e o preparo para o exame. Também pode ser necessário ajuste de medicamentos, em especial aspirina, anti-inflamatórios e anticoagulantes.

Quadro 1. Resumo do rastreamento de câncer de cólon e reto com colonoscopia*. Referências 4, 6, 7.

Avaliar risco (em especial história familiar de CCR e pólipos avançados - Tabela 1) do paciente a partir dos 20 anos e repetir a cada 5 anos.
Iniciar rastreamento aos 50 anos e manter até os 75 anos ou até expectativa de vida reduzida (< 10 anos). Repetir a cada 10 anos.
Pacientes de maior risco (Tabela 1) iniciar rastreamento aos 40 anos ou 10 anos antes do diagnóstico do familiar (o que ocorrer antes). Repetir a cada 5 anos.
Pacientes com câncer colorretal prévio, síndromes familiares, retocolite ulcerativa tem recomendações específicas de investigação e seguimento.

*na falta de recomendações específicas para o Brasil, apresentamos a posição do USPFTF - órgão de avaliação de intervenções preventivas dos Estados Unidos da América.

Acompanhamento e duração do rastreamento

Após um primeiro exame normal, deve-se repetir a colonoscopia a cada 10 anos. Se houver alguma alteração, o seguimento depende do tipo de lesão identificada e está resumida na Tabela 2.

Tabela 2. Seguimento de lesões colônicas após um primeiro exame alterado. Referência 9.

Achado colonoscopiaTempo para reavaliação
Normal10 anos
1-2 adenomas tubulares < 1 cm 7 a 10 anos
3-4 adenomas tubulares < 1 cm 3 a 5 anos
5-10 adenomas tubulares < 1 cm ou 1 adenoma ≥ 1 cm3 anos
Adenoma viloso ou tubulo-viloso ou com displasia de alto grau3 anos
Mais de 10 adenomas em um único exame1 ano
Ressecção em saca-bocado de adenoma ≥ 2 cm6 meses

Como apresentado no Quadro 1, há recomendação de rastreamento até os 75 anos. Além desse ponto de corte, deve-se considerar a expectativa de vida do paciente, e aqueles com expectativa de vida menor que 10 anos também devem ter seu rastreamento suspenso. Uma situação peculiar é aquele paciente que se apresenta perto dos 75 anos sem nunca ter realizado um exame de rastreamento. Nestes casos, pode-se realizar uma única colonoscopia e encerrar o rastreamento - uma estratégia que parece ser custo-efetiva.

Pacientes de maior risco

Para os pacientes que têm familiar de primeiro grau (pais, irmãos ou filhos) com alguma das situações apresentadas na Tabela 1, deve-se iniciar rastreamento aos 40 anos ou 10 anos antes do diagnóstico do familiar (o que ocorrer antes). Nesses casos, deve-se dar forte preferência para colonoscopia e esta deve ser repetida a cada 5 anos. Teste imunoquímico fecal é alternativa para aqueles pacientes que se negarem a realizar colonoscopia.

Outras ferramentas para rastreamento

Além da colonoscopia, outras ferramentas de rastreamento estão disponíveis, cada uma delas com vantagens e desvantagens. Comparativamente à colonoscopia, a principal vantagem é que todos os testes alternativos tendem a ser mais confortáveis, baratos e de menor custo. Entretanto, devem ser realizados com maior frequência e são considerados exames preliminares. Ou seja, quase sempre seus resultados precisarão ser confirmados com um exame de colonoscopia.

Pesquisa de sangue oculto nas fezes

É a opção mais antiga para o rastreamento. Trata-se de um exame baseado em um reagente, pode ser realizado em domicílio e deve ser repetido anual ou bianualmente. Tem como vantagens comodidade, baixo custo e alta disponibilidade. É a alternativa recomendada em sistema de saúde com menos recursos. Existem recomendações de evitar uso de anti-inflamatórios, aspirina e carne vermelha nos 3-7 dias que antecedem a coleta. Alguns autores sugerem não realizar essas restrições por que elas diminuem a adesão ao rastreamento. É a ferramenta de rastreio com maior número de estudos avaliando sua eficácia e que comprovadamente reduz mortalidade específica por CCR.

Teste imunoquímico de hemoglobina fecal

É um teste realizado com amostra única de fezes a cada 1-3 anos. O exame detecta especificamente hemoglobina nas fezes, o que lhe confere uma especificidade e sensibilidade maiores que a pesquisa de sangue oculto. É um pouco mais caro que o exame anterior e costuma ser realizado em domicílio. É útil para pacientes que não desejam realizar colonoscopia em um primeiro momento e em sistemas de saúde com menos recursos. Também tem como vantagem dispensar cuidados específicos com dieta. Um ponto limitante é que possui menos estudos que outras técnicas e seus benefícios são baseados em dados observacionais e estudos de modelagem.

Sigmoidoscopia

Trata-se de um exame endoscópico simplificado, que costuma ser realizado sem sedação, com menos desconforto e com preparo mais simples. É recomendado a cada 5-10 anos. Pode ser realizado em clínicas e mesmo por generalistas treinados. Tem como desvantagem examinar apenas o reto e cólon sigmoide e esquerdo (até a flexura esplênica) e assim perder mais de 40% das lesões colônicas. Além disso, tende-se a recomendar complementar investigações alteradas com colonoscopia. Suas vantagens são o conforto, menor custo e um bom número de estudos randomizados demonstrando seu benefício em morte específica e mesmo morte por todas as causas. Alguns autores recomendam combinar técnicas (sigmoidoscopia associadas com teste imunoquímico ou pesquisa de sangue oculto), mas o único ensaio clínico que avaliou essa estratégia não demonstrou benefício dela em relação à sigmoidoscopia isolada.

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Referências:

  1. Ministério da Saúde. Câncer de Intestino. INCA. Acesso em 07 de setembro de 2023. https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/cancer/tipos/intestino/versao-para-profissionais-de-saude
  2. Bretthauer M, Løberg M, Wieszczy P, Kalager M, Emilsson L, Garborg K, Rupinski M, Dekker E, Spaander M, Bugajski M, Holme Ø, Zauber AG, Pilonis ND, Mroz A, Kuipers EJ, Shi J, Hernán MA, Adami HO, Regula J, Hoff G, Kaminski MF; NordICC Study Group. Effect of Colonoscopy Screening on Risks of Colorectal Cancer and Related Death. N Engl J Med. 2022 Oct 27;387(17):1547-1556. doi: 10.1056/NEJMoa2208375. Epub 2022 Oct 9. PMID: 36214590.
  3. Bretthauer M, Wieszczy P, Løberg M, et al. Estimated Lifetime Gained With Cancer Screening Tests: A Meta-Analysis of Randomized Clinical Trials. JAMA Intern Med. Published online August 28, 2023. doi:10.1001/jamainternmed.2023.3798
  4. USPFTF. Colorectal câncer: screening. Acesso em 08 de setembro de 2023. https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/recommendation/colorectal-cancer-screening
  5. National Health Service. Bowel cancer screening. Acesso em 07 de setembro de 2023. https://www.nhs.uk/conditions/bowel-cancer-screening/
  6. Uptodate. Screening for colorectal cancer: Strategies in patients at average risk. Uptodate. Acesso em 5 de setembro de 2023. https://www.uptodate.com/contents/screening-for-colorectal-cancer-strategies-in-patients-at-average-risk
  7. Uptodate. Screening for colorectal cancer in patients with a family history of colorectal cancer or advanced polyp. Uptodate. Acesso em 5 de setembro de 2023. https://www.uptodate.com/contents/screening-for-colorectal-cancer-in-patients-with-a-family-history-of-colorectal-cancer-or-advanced-polyp
  8. Uptodate. Tests for screening for colorectal cancer. Uptodate. Acesso em 05 de setembro de 2023. https://www.uptodate.com/contents/tests-for-screening-for-colorectal-cancer
  9. Uptodate. Overview of colon polyps. Uptodate. Acesso em 09 de setembro de 2023.https://www.uptodate.com/contents/overview-of-colon-polyps

DR

Dimitris Rados

Médico internista e endocrinologista. Mestre e doutor em endocrinologia pela UFRGS. Preceptor do programa de residência médica em medicina interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pesquisador do TelessaúdeRS.