Em nossa prática médica diária, enfrentamos desafios multifacetados, e um dos mais insidiosos é o combate às fake news que, na pediatria, está relacionado especialmente a vacinas e medicações que podem ser compradas sem receitas, como as de tosse.
Neste texto, compartilhamos algumas reflexões sobre esse tema crítico.
Principais desafios no combate às fake news na prática médica
A seguir, estão listados os principais desafios no combate às fake news na prática médica diária.
a. Tecnologia e redes sociais
As redes sociais, embora úteis para disseminar informações, também são terreno fértil para a propagação de desinformação. A velocidade com que informações incorretas podem se espalhar é alarmante, e, no aspecto tecnológico, ainda se busca solução para isso.
O uso de tecnologia, como a inteligência artificial (IA), para combater essa disseminação é algo promissor, mas ainda enfrenta desafios na detecção automática de notícias falsas. Alguns artigos sugerem modelos com resultados interessantes, como o uso de redes neurais gráficas, mas isso tudo ainda não é aplicado no nosso dia a dia.
Assim, a internet e redes sociais são aliados e, ao mesmo tempo, o terreno mais fértil para as fake news. É preciso saber como utilizá-las e filtrar seu conteúdo.
b. Desinformação sobre vacinas
As vacinas são um dos grandes avanços da medicina. Atualmente, vemos cada vez menos os graves quadros de meningites virais; a pandemia de COVID foi controlada; o tétano tornou-se uma doença rara; e a varíola foi erradicada. Na pediatria, é um tema importante no pronto-atendimento e também no consultório, onde temos que discutir o calendário, as indicações e as eventuais contra-indicações.
A desinformação sobre esse tema viaja rapidamente e pode impactar negativamente a aceitação de vacinas e a confiança nas orientações de saúde pública. Isso é particularmente preocupante na pediatria, quando a hesitação em vacinar pode ter consequências graves para a saúde das crianças. A desinformação pode vir de várias fontes, incluindo negadores de vacinas que usam táticas como conspiração e concessão de espaço a falsos especialistas.
c. Dificuldade de detecção
Mesmo com a IA, a detecção automática de notícias falsas é difícil, pois o conteúdo é projetado para se assemelhar de perto à verdade. Isso torna a tarefa de separar fatos de ficção incrivelmente complexa, exigindo uma abordagem multifacetada e que vá além da tecnologia.
A detecção de fake news é um campo em constante evolução, com novas técnicas e abordagens sendo desenvolvidas regularmente. No entanto, a natureza adaptativa das fake news significa que, à medida que desenvolvemos novas formas de detectá-las, os criadores de desinformação também estão aprimorando suas técnicas.
A complexidade da linguagem, o uso de imagens manipuladas e a disseminação de informações através de várias plataformas tornam a detecção ainda mais desafiadora. Além disso, a linha entre opinião pessoal, interpretação errônea e desinformação intencional pode ser tênue, tornando a tarefa de identificar e combater fake news ainda mais delicada.
A detecção manual, embora valiosa, é demorada e pode ser influenciada por vieses e interpretações individuais. A detecção automatizada, por outro lado, ainda está em sua infância e pode ser facilmente enganada por técnicas sofisticadas.
A colaboração entre profissionais de saúde, tecnólogos, governos e organizações internacionais é vital para desenvolver uma abordagem robusta e eficaz para detectar e combater fake news. Isso inclui não apenas a tecnologia, mas também a educação, a legislação e a ética.
Como diferenciar as informações falsas da medicina baseada em evidência?
Diferenciar informações falsas da medicina baseada em evidência é uma tarefa complexa e multifacetada que requer uma abordagem ampla.
a. Utilização de tecnologia
As redes neurais gráficas e outras tecnologias de IA podem ser ferramentas úteis na detecção de notícias falsas. No entanto, essas tecnologias ainda estão em desenvolvimento e enfrentam desafios na precisão e eficácia. A combinação de abordagens baseadas em conteúdo, propagação e contexto social pode fornecer uma solução mais robusta, mas ainda estamos longe de uma solução perfeita.
b. Educação e conscientização
A educação é uma das ferramentas mais poderosas em nosso arsenal. Isso inclui educar a nós mesmos, nossos colegas e nossos pacientes. Ensinar aos pacientes como reconhecer táticas usadas por negadores de vacinas e destacar o consenso científico sobre a segurança e eficácia das vacinas é vital. Isso também envolve fornecer informações claras e baseadas em evidências, usando linguagem acessível e compreensível.
c. Verificação de fontes
A verificação de fontes é uma habilidade essencial na era digital. Isso inclui consultar fontes confiáveis, como a Organização Mundial da Saúde, Sociedade Brasileira de Pediatria e outros órgãos governamentais. A verificação cruzada de informações com várias fontes confiáveis pode ajudar a garantir a precisão. Também é útil estar ciente sobre os sites e fontes conhecidos por disseminar desinformação.
d. Colaboração interprofissional
Trabalhar em colaboração com outros profissionais de saúde, incluindo farmacêuticos, enfermeiros e especialistas, pode fornecer uma rede de apoio na identificação e combate às fake news. A colaboração permite uma abordagem mais holística e uma rede de segurança adicional na verificação de informações.
e. Desenvolvimento de habilidades críticas de pensamento
O desenvolvimento de habilidades críticas de pensamento em nós mesmos e em nossos pacientes é fundamental. Isso inclui a capacidade de avaliar informações, considerar a fonte, verificar a precisão e considerar o contexto mais amplo. Essas habilidades são vitais na era da informação e podem ajudar a nos proteger contra a desinformação.
f. Engajamento com comunidades e grupos de pacientes
O engajamento com comunidades e grupos de pacientes pode fornecer insights valiosos sobre as preocupações e crenças predominantes. Isso pode ajudar na identificação de fake news e na criação de estratégias eficazes para combater a desinformação em nível comunitário.
g. Utilização de guias e recursos confiáveis
A utilização de guias e recursos confiáveis, como aqueles fornecidos por organizações de saúde respeitadas, pode fornecer uma base sólida para a prática baseada em evidências. Isso inclui seguir diretrizes clínicas, consultar bancos de dados de pesquisa e utilizar ferramentas de verificação de fatos.
Como se comunicar sobre notícias falsas?
Como devemos nos comunicar com os pacientes e colegas sobre as informações falsas ou errôneas manipuladas por eles? A seguir, destacamos algumas estratégias.
a. Não entrar em debate
Afirmar o que a ciência apoia, sem entrar em debates infrutíferos, é uma abordagem eficaz. Isso pode ser desafiador, especialmente quando enfrentamos informações falsas disseminadas por colegas médicos ou profissionais de saúde, mas o embate pode ser bastante improdutivo. Ao invés disso, apontar a divergência, suas fontes, e fazer a ponderação de forma certeira, mas não agressiva, tende a ser mais produtivo.
b. Entrevistas motivacionais
Utilizar conceitos de entrevistas motivacionais para entender as preocupações e mover o paciente em direção à aceitação é uma abordagem centrada no paciente. Isso requer empatia, paciência e habilidades de comunicação eficazes.
c. Portas abertas
Deixar a portas abertas para futuras visitas e discussões, mesmo que, por exemplo, o paciente escolha não se vacinar naquele dia, é uma abordagem humana e respeitosa. Isso permite que o paciente sinta que suas preocupações são ouvidas e que não sofre pressão.
Estudos científicos, estatísticas e fontes oficiais em medicina
Quais estudos científicos, estatísticas e fontes oficiais corroboram ou refutam as fake news em medicina? O que eles dizem? A seguir, trazemos algumas informações sobre essas perguntas.
a. Estudos sobre detecção de fake news
A pesquisa científica está explorando a detecção de notícias falsas usando tecnologias avançadas. Esses estudos fornecem insights valiosos sobre as complexidades da detecção de notícias falsas e as abordagens promissoras que estão sendo desenvolvidas.
b. Orientações de organizações de saúde
Organizações como a OMS fornecem orientações baseadas em evidências para combater a desinformação sobre vacinas. Essas orientações são fundamentais para ajudar os profissionais de saúde a navegar no cenário complexo das fake news.
O impacto das fake news na medicina
Que impactos as fake news podem causar na medicina? A desinformação pode atingir diferentes aspectos com consequências na área. Destacamos a seguir alguns deles.
a. Impacto na sociedade
O impacto das fake news na medicina é significativo e multifacetado. A desinformação sobre vacinas, que já usamos como exemplo, está moldando crenças negativas sobre a imunização, mesmo em um país com um programa de imunizações que foi um modelo mundial, como o Brasil. A facilidade de geração e disseminação de notícias falsas online facilita a criação de conteúdo manipulado e falso e dificulta a sua detecção.
b. Consequências para a saúde pública
As consequências para a Saúde Pública são graves. A hesitação em vacinar, alimentada por informações incorretas, pode levar a surtos de doenças evitáveis. A desinformação também pode corroer a confiança no sistema de saúde, com implicações de longo alcance.
c. Efeitos negativos das infodemics
A OMS reconhece a desinformação em Saúde como algo que afeta negativamente o comportamento de saúde das pessoas. Durante surtos e desastres, interpretações incorretas da informação de saúde podem impactar negativamente a saúde mental, aumentar a hesitação em vacinar e atrasar a prestação de cuidados de saúde.
A revisão sistemática da OMS encontrou 31 estudos que analisaram fake news, desinformação e infodemia relacionadas à saúde, destacando a necessidade de ações como o desenvolvimento de políticas legais, criação e promoção de campanhas de conscientização, melhoria do conteúdo relacionado à saúde na mídia de massa e aumento da alfabetização digital e em saúde das pessoas.
d. Desafios na contagem de desinformação online
Essa mesma revisão da OMS encontrou que até 51% das postagens associadas a vacinas, até 28,8% das postagens associadas à COVID-19 e até 60% das postagens relacionadas a pandemias continham desinformação. Entre os vídeos do YouTube sobre doenças infecciosas emergentes, de 20 a 30% continham informações imprecisas ou enganosas. A contramedida inclui campanhas de conscientização, plataformas com dados baseados em evidências e esforços para melhorar a alfabetização em mídia e saúde.
e. Efeitos da desinformação online no comportamento de saúde das pessoas
A revisão sistemática da OMS descobriu que as pessoas sentem angústia mental, social, política e/ou econômica devido ao conteúdo falso e enganoso sobre saúde nas redes sociais durante pandemias, emergências de saúde e crises humanitárias. No entanto, também foram relatados resultados positivos, como conhecimento e conscientização aprimorados, maior conformidade com as recomendações de saúde e comportamentos de saúde mais positivos entre os usuários em comparação com os modelos clássicos de disseminação de informações.
Conclusão
Em conclusão, as fake news são uma realidade e seu combate na medicina é complexo e requer uma abordagem colaborativa. A educação, a comunicação eficaz e o acesso a informações confiáveis são vitais. Sites confiáveis, como o da editora Artmed, com conteúdo baseado no que temos de mais atual na ciência e com textos claros, são um auxílio importante nessa luta.
Referências:
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Health-related fake news on social media platforms: A systematic literature review - PUCRS.
É uma ação criminosa, diz Ministra Nísia Trindade sobre fake news que questionam segurança das vacinas - Governo do Brasil.
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