14 de Setembro de 2023 | 9 min de leitura

Hipertireoidismo: diagnóstico e manejo na gestação

Doenças tireoidianas tem predileção pelo sexo feminino e, portanto, tendem a acometer mulheres planejando gestação ou mesmo já grávidas. Estima-se que 0,2% das gestações ocorram em mulheres com doença de Graves. Apesar deste percentual relativamente pequeno, na gestação ocorrem alterações fisiológicas que levam ao aumento dos hormônios tireoidianos e redução do TSH (thyroid-secreting hormone). Essa produção aumentada tem um pico que ocorre no primeiro trimestre (por volta da 11a semana) - sugerimos ver nossa postagem sobre hipotireoidismo na gestação para uma discussão mais detalhada dessas alterações fisiológicas. Assim, até 5% das gestantes terão hiperprodução de hormônios tireoidianos.

Essa situação tem desafios particulares para as pacientes e para os seus médicos, como veremos a seguir. Os principais desafios são diferenciar as alterações tireoidianas esperadas na gestação das causas primárias de hiperprodução hormonal e lidar com o balanço entre os riscos da doença de Graves e os potenciais efeitos adversos dos medicamentos.

Quadro clínico e diagnóstico do hipertireoidismo

O quadro clínico de hipertireoidismo na gestação é semelhante ao das pessoas não grávidas. Para uma revisão sobre hipertireoidismo fora da gestação e diferenciação entre hipertireoidismo e tireotoxicose, sugerimos ver esta nossa postagem (link).

O que se destaca na gestação são as potenciais consequências adversas desta doença. Hipertireoidismo não diagnosticado e não tratado aumenta o risco de abortamento, trabalho de parto prematuro, baixo peso ao nascer, hipertensão e insuficiência cardíaca. Além disso, pode haver comprometimento de desenvolvimento neuropsicomotor posterior das crianças. Felizmente, o risco desta complicações está diretamente relacionado ao controle da doença; portanto, com o tratamento adequado, estes riscos podem ser minimizados.

O diagnóstico de hipertireoidismo é igual na gestação e fora dela, ou seja, é necessário a presença de um TSH reduzido acompanhado de hormônios periféricos aumentados. Usualmente se avalia os hormônios periféricos com a dosagem de T4, mas, se este der normal, deve-se complementar com a dosagem de T3. Um outro aspecto relevante é que, nem todo TSH abaixo deve gerar apreensão com complicações; hipertireoidismo subclínico (TSH reduzido com hormônios periféricos normais) não está associado com complicações.

Considerando as alterações que ocorrem no funcionamento tireoidiano durante a gravidez, o desafio na gestação é a definição de valores normais para os exames de TSH e hormônios periféricos. O ideal sempre é utilizar referências laboratoriais ajustadas para a população local de gestantes saudáveis; entretanto, como isso frequentemente não está disponível, recomenda-se utilizar os ajustes apontados na Tabela 1.

Tabela 1. Adaptações do valores normais dos exames tireoidanos para gestação. Adaptado de (1) e (2).

 
TSH No primeiro trimestre, reduzir o limite inferior do normal em 0,4 mU/L e limite superior do normal em 0,5 mU/L a partir dos valores de pessoas não grávidas.
No segundo e terceiro trimestre utilizar os valores de pessoas não grávidas.
Hormônio periféricos Preferência por T4 livre ajustado.
Se T4 livre ajustado não disponível, preferir a dosagem de T4 total com ajustes: - entre a 7a e a 16a semana ajustar o intervalo normal do T4 total em 5% a cada semana a partir dos valores de pessoas não grávidas. Ou seja, na 12a semana, multiplicar o limite superior e inferior por 1,25 (12 - 7 semanas = 5 semanas; 5x5%=25%); - após a 16a semana ajustar o intervalo normal do T4 total em 50% (multiplicar limite superior e inferior por 1,5) a partir dos valores de pessoas não grávidas;

Para além do diagnóstico de tireotoxicose, os principais desafio na gestação em termos de definição diagnóstica são:

  1. Diferenciar hipertireoidismo primário de alterações relacionadas à gestação. A ausência de história prévia de doença tireoidiana, ausência de oftalmopatia e bócio, quadro auto-limitado com sintomas mais leves, hormônios periféricos dentro ou próximo do intervalo normal para gestação e a presença de vômitos intensos indicam o diagnóstico de tireotoxicose gestacional transitória (usualmente associada ao diagnóstico de hiperêmese gravídica). Da mesma forma, presença de gestações gemelares, mola hidatiforme e córiocarcinoma reforçam esse diagnóstico. Apesar de ser marcadamente elevado nestes casos, isoladamente o nível sérico de hCG não auxilia no diagnóstico.
  2. Definição do diagnóstico da etiologia do hipertireoidismo. Além do diagnóstico diferencial acima, deve-se tentar definir qual a etiologia do hipertireoidismo naquelas pacientes com doença primária da tireóide. O quadro mais comum é doença de Graves (vide link para postagem de hipertireoidismo fora da gestação), que cursa com bócio difuso, pode ter oftalmopatia e é mais comum em adultos até os 40 anos. O TRAb (do inglês thyrotropin receptor antibodies) é um anticorpo mais específico para essa doença e age destruindo a glândula ao mesmo tempo que estimula o receptor de TSH (fisiopatogênese da doença). Em casos que se afasta o diagnóstico de tireotoxicose gestacional, mas o TRAb negativo ou há presença de nódulos na palpação tireoidiana, a ultrassonografia pode ser útil para corroborar o diagnóstico de bócio uni ou multinodular como causa do hipertireoidismo.

Em suma, a maioria das pacientes terão TSH reduzido com hormônios periféricos normais e acompanhamento clínico costuma ser suficiente - não há necessidade de uso de antitireoidianos nesta situação. Nos casos em que não é possível estabelecer que se trata de tireotoxicose gestacional, recomenda-se a dosagem do anticorpo TRAb; se alterado, reforça a hipótese de doença de Graves. A dosagem de T3 também é útil nestas situações, uma vez que tende estar mais elevado nos casos de hipertireoidismo (em comparação ao T4 que costuma ser mais elevado em tireotoxicoses sem hipertireoidismo - por exemplo, tireoidites).

Tratamento

Tireotoxicose gestacional transitória

Para gestantes com o diagnóstico provável de tireotoxicose gestacional transitória, o manejo é de suporte e dirigido pela gravidade do quadro clínico. Deve-se medicar adequadamente o quadro de náuseas e vômitos e tratar a desidratação. Apesar de se tratar de um tratamento de suporte, não se deve considerar este um quadro simples ou mais leve, já que, em função dos vômitos, pode ser necessária internação hospitalar para controle sintomático, hidratação e correção dos distúrbios eletrolíticos. Para mulheres com sintomas autonômicos intensos (agitação, tremores, ansiedade, insônia), pode-se considerar o uso de beta-bloqueadores. O uso de medicamentos antitireoidianos não é indicado.

Como discutido acima, nem sempre a diferenciação entre doença de Graves e tireotoxicose gestacional é clara; naquelas pacientes com quadro indeterminado, observação da evolução do quadro é útil (em quadros não graves), uma vez que a na tireotoxicose gestacional há remissão gradual após o primeiro trimestre.

Doença de Graves

O principal recurso terapêutico para a doença de Graves na gestação são as drogas antitireoidianas. Metimazol e propiltiuracil são as opções disponíveis no Brasil. Em função do risco de teratogênese, prefere-se o propiltiuracil até a 16a semana e o metimazol após isso (ver a seguir a conversão de doses). A dose inicial do medicamento depende da gravidade dos sintomas. As doses totais do dia variam de 5-30 mg para o metimazol (dose usual entre 10 e 20 mg) em uma ou duas administrações diárias e 100 - 600 mg (dose usual 200 - 400 mg) em três administrações diárias. Os efeitos adversos mais comuns são cutâneos (reações alérgicas) e, se leves, podem ser tolerados. Agranulocitose (0,15%) e insuficiência hepática (< 0,1%) são eventos mais raros, mas potencialmente graves. Quanto a teratogênese, estima-se que até 4% das crianças expostas no primeiro trimestre terão algum efeito do metimazol, enquanto 2% é o estimativa para o propiltiuracil.

O alvo de tratamento deve ser manter os hormônios periféricos no limite superior do normal (ou mesmo até um pouco elevados) utilizando-se a menor dose possível de medicamento. Essa abordagem visa minimizar a exposição ao fármaco e, ao mesmo tempo, minimizar o risco de hipotireoidismo fetal: os medicamentos referidos cruzam a barreira placentária e também bloqueiam a produção fetal após o surgimento da tireoide (2 trimestre).

O seguimento laboratorial deve ser realizado a cada 4 semanas com dosagem de TSH, T4 total ou livre (com os ajustes de intervalo apresentados acima - Quadro 1). Apesar de útil para o diagnóstico, a dosagem de T3 para o seguimento deve ser evitada, pelo risco de tratamento excessivo e indução de hipotireoidismo fetal quando esse hormônio é usado como alvo terapêutico.

Beta-bloqueadores (propranolol 10-40 mg até 3 x ao dia) também podem ser utilizados para controle de sintomas, buscando-se utilizar a menor dose pelo menor período possível. Na maioria das mulheres em 6 semanas é possível suspender o uso. Os riscos relacionados a esses medicamentos são restrição ao crescimento, bradicardia e hipoglicemia neonatal.

Orientações para mulheres com doença de Graves planejando gestação

O médico deve questionar e discutir o plano concepcional de todas as mulheres em idade fértil com doença de Graves e explicar o impacto da doença na gestação - especialmente se não controlada. Idealmente, mulheres com doença de Graves devem estar com a doença controlada e com tratamento estável para engravidar. Além disso, mulheres que receberam tratamento com radioiodo (I131), devem postergar a gestação por pelo menos 6 meses. Neste interim, contracepção altamente efetiva é recomendada.

Para as mulheres usando medicações antitireoidianas que engravidam, a principal opção é, ao se diagnosticar a gestação, suspender o uso do fármaco se o hipertireoidismo estiver em remissão e as doses não forem elevadas. Se esta opção for realizada, deve-se monitorar TSH e T4 total ou livre a cada 1-2 semanas no início da gestação, prolongando o intervalo ao passar do primeiro trimestre. A decisão de reinício deve levar em conta o nível dos hormônios e os exames - alterações leves provavelmente podem ser toleradas.

Se a suspensão não for possível, deve-se preferir o uso de propiltiuracil desde o período pré-concepcional até a 16a semana, para minimizar o risco de teratogênese (que é menor com esse fármaco - mas ainda assim existe). A partir do segundo trimestre, passado o maior risco de efeitos teratogênicos, recomenda-se a troca para metimazol, para minimizar o risco de dano hepático na mãe. A conversão entre metimazol e propiltiuracil é aproximadamente 1:20 (10 mg de metimazol ao dia equivalem a 100 mg de propiltiuracil 2 vezes ao dia).

Por fim, ressalta-se que o assunto deve ter sido previamente discutido e, ao primeiro sinal de atraso menstrual, a mulher deve investigar a possibilidade de gestação e contatar o seu médico de referência para receber orientações.

Seguimento daquelas com TRAb positivo

Assim como ocorre com os hormônios tireoidianos e com os medicamentos, o TRAb também cruza a barreira placentária e, assim, pode induzir hipertireoidismo fetal (hiperprodução pela glândula do feto). Quando isso ocorre no contexto de hipertireoidismo materno (situação descrita acima), o manejo do feto está sendo feito junto com o manejo da mãe, buscando-se os alvos de tratamento já apresentados. Entretanto, em algumas situações, a mãe já está com a doença tireoidiana controlada (ou mesmo em hipotireoidismo), mas os níveis de TRAb estão elevados (3 vezes acima do valor de referência). Isto costuma ocorrer após tireoidectomia ou uso de iodo radioativo e, nesta situação, pode ocorrer um paradoxo de eu/hipotireoidismo materno com hipertireoidismo fetal. Em função disso, deve-se lembrar que mulheres que já tiveram doença de Graves também devem ter seus níveis de TRAb verificados na gestação e, se elevados, monitorados ao longo da gestação. Se elevados no final da gestação, monitorização ultrassonográfica permite identificar bócio fetal, oligodrâmnio, taquicardia e baixo crescimento. Além disso, também é necessário acompanhar a função tireoidiana desses bebês no período neonatal. Esta é uma das raras situações que pode ser necessário o uso de antitireoidianos para tratar o hipertireoidismo fetal e reposição de levotiroxina para tratar o hipotireoidismo materno. 


Referências:

American Thyroid Association. 2017 Guidelines of the American Thyroid Association for the Diagnosis and Management of Thyroid Disease During Pregnancy and the Postpartum. Thyroid 2017 (27): 315.

Hyperthyroidism during pregnancy: Clinical manifestations, diagnosis, and causes. De Uptodate, acesso em 13/06/2023, disponível em <https://www.uptodate.com/contents/hyperthyroidism-during-pregnancy-clinical-manifestations-diagnosis-and-causes>.

Hyperthyroidism during pregnancy: Treatment. De Uptodate, acesso em 13/06/2023, disponível em <https://www.uptodate.com/contents/hyperthyroidism-during-pregnancy-treatment>


DR

Dimitris Rados

Médico internista e endocrinologista. Mestre e doutor em endocrinologia pela UFRGS. Preceptor do programa de residência médica em medicina interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pesquisador do TelessaúdeRS.