23 de Agosto de 2023 | 9 min de leitura

Hipotireoidismo: diagnóstico e manejo

O hipotireoidismo primário (periférico) é uma doença que ocorre quando o nível de hormônios tireoidiano (T3 e T4) está comprometido pela produção insuficiente por um defeito na glândula tireoide. O termo “primário” é importante para diferenciar das condições secundárias ou terciárias (centrais) que acometem, respectivamente, a hipófise ou hipotálamo. Trata-se de uma doença comum, atingindo aproximadamente 10% das mulheres e 1% dos homens na idade adulta.

A principal causa é o dano autoimune (tireoidite de Hashimoto); cirurgia prévia (tireoidectomia parcial ou total), danos por radiação (uso de iodo radioativo para tratamento ou radioterapia externa), congênitos (agenesia da glândula) são algumas das outras possíveis etiologias. Neste texto iremos revisar o diagnóstico e manejo do hipotireoidismo primário (franco e subclínico) em adultos - manejo na gestação, período neonatal e infância e do hipotireoidismo central têm peculiaridades que não serão abordadas aqui.

Quadro clínico

Os sintomas e sinais do hipotireoidismo são inespecíficos. Isso é relacionado ao efeito dos hormônios tireoidianos de manter o metabolismo intermediário e ter ação em praticamente todos os tecidos do corpo humano. Assim, a sua falta leva a uma “redução geral do metabolismo”, o que se manifesta como intolerância ao frio, fadiga, comprometimento da memória e da concentração, fraqueza, constipação, frio excessivo, redução do condicionamento físico, comprometimento da libido e fertilidade, pele seca, edema, queda de cabelo - apenas para citar alguns.

Quanto aos sinais, reflexos tendinosos lentificados, pele fria e seca, espessamento da pele e bradicardia aumentam a chance do diagnóstico. Manifestações mais floridas de magrolossia, derrames cavitários, sonolência e coma são achados tardios ou de casos graves (e incomuns). Uma curiosidade é que pode haver um aspecto amarelado na pele dos pacientes com hipotireoidismo, que é relacionado a hipercarotenemia que a doença induzir, uma vez que a falta do hormônio reduz a conversão desses substratos em retinol.

Além dos pontos acima, um comentário especial sobre o peso corporal é necessário. No imaginário popular, e mesmo na mídia não especializada, hipotireoidismo é uma causa frequente e provável de obesidade. O ganho de peso que o hipotireoidismo induz é relacionado a acúmulo de líquido e, mesmo nos casos graves de hipotireoidismo, o seu tratamento não reduz o percentual de gordura corporal dos indivíduos. Em suma, deve-se suspeitar de hipotireoidismo em um indivíduo com ganho de peso (especialmente se acompanhado de edema), mas não atribuir um quadro de obesidade à disfunção tireoidiana.

Por fim, apesar dos achados clínicos serem inespecíficos isoladamente, em conjunto podem auxiliar no diagnóstico do hipotireoidismo. O escore de Billewicz (Tabela 1) combina uma série de achados para auxiliar no diagnóstico; um escore menor que -15 reduz a probabilidade do diagnóstico em aproximadamente 45%, enquanto um escore maior que 30 pontos aumenta a probabilidade de forma semelhante.

Tabela 1. Escore de Billewicz para diagnóstico clínico de hipotireoidismo. Adaptado de (1). (uma pontuação acima de +19 sugere o diagnóstico enquanto uma pontuação abaixo de -24 afasta)

 
Sintomas ou sinais Pontuação se presente Pontuação se ausente
Sudorese reduzida +6 -2
Pele seca +3 -6
Intolerância ao frio +4 -5
Ganho de peso +1 -1
Constipação +2 -1
Rouquidão +5 -6
Parestesias +5 -4
Surdez +2 0
Movimentos lentificados +11 -3
Pele grosseira +7 -7
Pele seca +3 -2
Edema periorbital +4 -6
Frequência cardíaca < 75 bpm +4 -4
Reflexo aquileu lentificado +15 -6

Diagnóstico de hipotireoidismo

Quanto ao diagnóstico do hipotireoidismo primário, sabe-se que o primeiro exame a ser solicitado é a dosagem do hormônio estimulante da tireoide (TSH, do inglês thyroid stimulating hormone). Apesar disso, a interpretação dos seus resultados gera dúvidas; e a maior parte dessas dúvidas vem do desconhecimento que:

  1. fisiologicamente, quem promove os efeitos no organismo são os hormônios periféricos (T4 e, principalmente, a forma mais ativa T3), porém a dosagem do TSH (que promove a secreção e produção de T4 e T3) é mais sensível. Isso pode ser observado no gráfico abaixo, que ilustra que dentro da faixa fisiológica as variações dos hormônios periféricos é relativamente pequena quando comparada com a variação do TSH;
  2. quando saímos do intervalo de normalidade, as variações do TSH são ainda mais extremas (e portanto, mais sensíveis para serem detectadas laboratorialmente) que as variações no T4 e T3;
  3. a relação entre hormônios periféricos e TSH é inversa. O TSH estimula de T4 e T3, cujos níveis, por sua vez, são detectados na hipófise para regular (reduzir) a secreção de TSH quando níveis adequados de hormônios tireoidianos foram atingidos na circulação (feedback negativo).

Figura 1. Relação entre TSH e T4 livre. Adaptado de (4).

Assim, o diagnóstico do hipotireoidismo franco é dado quando temos TSH elevado (acima do normal do laboratório - usualmente 4,5 mU/L) e hormônios periféricos reduzidos. No diagnóstico de hipotireoidismo subclínico, o paciente possui TSH alterado, porém o nível de hormônio periférico está normal. Além disso, é prática comum no hipotireoidismo subclínico repetir a dosagem do TSH em 3 meses para confirmar a alteração antes de se definir o diagnóstico e discutir tratamento (ver a seguir).

Deve-se destacar que é preferível solicitar a dosagem de T4 ou, ainda melhor, o T4 livre, que são técnicas laboratoriais mais bem estabelecidas e disponíveis do que de T3 ou T3 livre. Na prática deve-se dosar TSH e, se o mesmo vier alterado, verificar o nível de T4 ou T4 livre (nos pacientes sintomáticos pode-se solicitar o TSH e T4 livres simultaneamente). Só é recomendado fazer o diagnóstico de hipotireoidismo com base nos hormônios periféricos isoladamente na suspeita de doença hipotálamo-hipofisária (cirurgia prévia, traumatismo, presença de outras disfunções hormonais centrais). Essas relações estão resumidas na Tabela 2. Além disso, após o diagnóstico do hipotireoidismo primário, deve-se revisar a história atrás de potenciais causas. Dano autoimune é a causa mais comum, mas cirurgias prévias, tratamento com iodo radioativo, uso de medicamentos e tireoidite são outras etiologias relativamente comuns.

Tabela 2. Diagnóstico laboratorial de hipotireoidismo.

 
Diagnóstico TSH Hormônios periféricos
Hipotireoidismo primário - franco Elevado Reduzido
Hipotireoidismo primário - subclínico Elevado Normal
Hipotireoidismo central Normal ou reduzido Reduzido

Por fim, outros 2 exames costumam ser considerados em um paciente com hipotireoidismo primário:

  1. A ultrassonografia de tireóide não tem papel no diagnóstico ou manejo de hipotireoidismo. Ela não deve ser solicitada rotineiramente, mas sim quando há sinais clínicos de alteração morfológica na glândula. Ou seja, solicita-se ultrassom de tireóide em pacientes com nódulo, bócio (aumento de volume) detectados no exame físico ou sintomas compressivos (sufocação, disfagia).
  2. A avaliação do anticorpo anti-TPO é tópico de discussão na literatura. Ele é um marcador de autoimunidade contra a tireóide e seu uso está mais definido em pacientes com hipotireoidismo subclínico, tireoidite pós-parto e tireoidite silenciosa, para predizer o risco de evolução e auxiliar na decisão de tratamento; também pode ser realizado na investigação da causa do hipotireoidismo. O exame não deve ser realizado rotineiramente em pacientes assintomáticos e/ou sem alteração no TSH.

Tratamento

A base do tratamento do hipotireoidismo é o uso de levotiroxina por via oral, sendo a dose diária de reposição 1,6 mcg para cada kg de peso ideal do paciente. Na maioria dos pacientes com hipotireoidismo franco pode-se iniciar com dose calculada do medicamento, mas em pacientes idosos ou com risco cardiovascular aumentado deve-se iniciar com 25 mcg ao dia e aumentar progressivamente. O alvo terapêutico no hipotireoidismo primário é atingir níveis normais de TSH (algumas referências sugerem buscar a metade inferior do intervalo normal, ou seja, abaixo de 2,5 mU/L). Em idosos (em especial octogenários), busca-se TSH pro volta de 6-8 mU/L. A cada ajuste de dose deve-se reavaliar o TSH em aproximadamente 6 semanas. Ajustes são realizados aumentando ou reduzindo 12,5-25 mcg de acordo com o nível do TSH e não do T4 ou T4 livre. Após atingir-se estabilidade e se não houver início de outras medicações ou mudanças no peso, as revisões podem ser a cada 6-12 meses.

É recomendação tomar a levotiroxina em jejum (30-60 minutos antes do café da manhã) diariamente. Apesar dessa rotina, deve-se lembrar que a levotiroxina tem meia vida de uma semana e o jejum visa aumentar a absorção do medicamento. Ou seja, outros esquemas são possíveis, se isso melhorar a adesão do pacientes. Existem estudos testando uso de dose noturna (antes do jantar) e mesmo dose semanal (multiplica-se a dose diária por 7). A questão central parece ser buscar uma rotina de uso que seja consistente ao longo do tempo para o paciente e, com base nesta rotina realizar ajustes de dose.

No hipotireoidismo franco todos os pacientes tem indicação de tratamento; já no hipotireoidismo subclínico nem todos indivíduos tem indicação de reposição de levotiroxina. Não existem estudos randomizados que deem respostas definitivas, mas é consenso indicar tratamento em pessoas com hipotireoidismo subclínico nas seguintes situações:

  1. Pacientes com TSH persistentemente maior que 10 mU/L;
  2. Pacientes com TSH entre 7 e 10 mU/L com menos de 70 anos ou em qualquer idade se sintomas atribuíveis ao hipotireoidismo subclínico (após descartar causas alternativas);
  3. Pacientes com TSH entre o limite superior do laboratório e menor que 7 mU/L podem ser tratados se tiverem sintomas atribuíveis (após descartar causas alternativas) e menos que 60-70 anos. Anti-TPO positivo também costuma ser utilizado como indicação de tratamento nesta situação;
  4. Mulheres com infertilidade;

Quanto à dose no hipotireoidismo subclínico, pode-se iniciar com dose “cheia” (1,6 mcg por kg ao dia) em pacientes jovens e com TSH mais próximo de 10 mU/L ou 25-50 mcg naqueles mais velhos e com alterações menos marcadas do TSH. Nos indivíduos não tratados, recomenda-se repetir TSH em aproximadamente 6 meses.


Referências:

Steven McGee. Evidence-based Physical Diagnosis, 3rd Edition. Elsevier.


Sandra Pinho Silveiro e Fabíola Satler. Rotinas em Endocrinologia. Artmed.

Diagnosis of and screening for hypothyroidism in nonpregnant adults, de Uptodate. Acesso em 04/06/2023. Disponível em <https://www.uptodate.com/contents/diagnosis-of-and-screening-for-hypothyroidism-in-nonpregnant-adults>.

Guidelines for the Treatment of Hypothyroidism: Prepared by the American Thyroid Association Task Force on Thyroid Hormone Replacement. Thyroid. 2014; 24(12): 1670–1751. Disponível em <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4267409/>

Shlomo Melmed, Kenneth S. Polonsky, P. Reed Larsen, Henry M. Kronenberg. Williams Textbook of Endocrinology, 13th Edition. Elsevier.

DR

Dimitris Rados

Médico internista e endocrinologista. Mestre e doutor em endocrinologia pela UFRGS. Preceptor do programa de residência médica em medicina interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pesquisador do TelessaúdeRS.