14 de Setembro de 2023 | 9 min de leitura

Hipotireoidismo: diagnóstico e manejo na gestação

Hipotireoidismo é uma condição de saúde bastante frequente na população feminina e, portanto, é esperado que diversas gestantes tenham tal diagnóstico - seja ele prévio a gestação ou diagnosticado durante a gravidez. Trata-se de uma doença de diagnóstico e tratamento relativamente simples (apesar de algumas controvérsias e incertezas), como veremos neste texto.

Ainda assim, é necessário cuidado e atenção a esse quadro, uma vez que os hormônios tireoidianos tem papel central na manutenção da gestação e no desenvolvimento cerebral de fetos e recém-nascidos. Além disso, está ficando claro que a auto-imunidade contra tireóide (mesmo com função tireoidiana normal ou pouco alterada) tem consequências adversas para na gestação. Ou seja, é necessário que o médico compreenda como manejar essa doença para minimizar o risco de abortamentos, partos pré-termo e comprometimento cognitivo.

Um discussão fisiológica e laboratorial necessária

Antes de entrarmos no manejo clínico das gestantes com hipotireoidismo, é necessário revisar alguns fenômenos fisiológicos que acontecem na função tireoidiana durante a gravidez. Esses aspectos impactam diretamente o que consideramos “normal” laboratorialmente e, portanto, como definimos que uma mulher tem ou não doença tireoidianas na gestação.

Durante a gravidez, a demanda por hormônio tireoidiano aumenta no organismo e, portanto, há uma aumento na produção do mesmo de até 50%. Em função da semelhança bioquímica entre o TSH (do inglês thyroid-stimulating hormone) e o hCG (do inglês human chorionic gonadotropin), a molécula de hCG, quando em grandes concentrações, é capaz de se ligar no receptor de TSH na tireóide. Ou seja, boa parte do aumento da produção dos hormônios tireoidianos periféricos (T4 e T3) é mediada pelo hCG. Em suma, os valores normais de TSH na gestação são menores quando os níveis de hCG são mais elevados - o que ocorre mais marcadamente no primeiro trimestre.

A combinação de maior produção e mudanças em proteínas séricas, faz com que tanto o nível quanto a dosagem dos hormônios periféricos (T4 e T3) fiquem alterados na gestação. Os testes comercialmente disponíveis de T4 livre na maioria dos laboratórios não ajustam adequadamente para essas alterações e nem seu intervalo é ajustado para a população em que estão sendo usados. Assim deve-se dar preferência para a dosagem de T4 total com o intervalo normal sendo ajustado para a gestação (vide abaixo).

Em suma, idealmente os laboratórios devem oferecer valores de hormônios tireoidianos normais na gestação de acordo com a população local (sem doença tireoidianas e com auto-anticorpos negativos) e o trimestre de gestação. Como tais dados são frequentemente não informados, recomenda-se a utilização dos parâmetros apresentados na Tabela 1.

 
TSH No primeiro trimestre, reduzir o limite inferior do normal em 0,4 mU/L e limite superior do normal em 0,5 mU/L a partir dos valores de pessoas não grávidas.
No segundo e terceiro trimestre utilizar os valores de pessoas não grávidas.
Hormônio periféricos Preferência por T4 livre ajustado.
Se T4 livre ajustado não disponível, preferir a dosagem de T4 total com ajustes: - entre a 7a e a 16a semana ajustar o intervalo normal do T4 total em 5% a cada semana a partir dos valores de pessoas não grávidas. Ou seja, na 12a semana, multiplicar o limite superior e inferior por 1,25 (12 - 7 semanas = 5 semanas; 5x5%=25%); - após a 16a semana ajustar o intervalo normal do T4 total em 50% (multiplicar limite superior e inferior por 1,5) a partir dos valores de pessoas não grávidas;

 

 
TSH No primeiro trimestre, reduzir o limite inferior do normal em 0,4 mU/L e limite superior do normal em 0,5 mU/L a partir dos valores de pessoas não grávidas.
No segundo e terceiro trimestre utilizar os valores de pessoas não grávidas.
Hormônio periféricos Preferência por T4 livre ajustado.
Se T4 livre ajustado não disponível, preferir a dosagem de T4 total com ajustes: - entre a 7a e a 16a semana ajustar o intervalo normal do T4 total em 5% a cada semana a partir dos valores de pessoas não grávidas. Ou seja, na 12a semana, multiplicar o limite superior e inferior por 1,25 (12 - 7 semanas = 5 semanas; 5x5%=25%); - após a 16a semana ajustar o intervalo normal do T4 total em 50% (multiplicar limite superior e inferior por 1,5) a partir dos valores de pessoas não grávidas;

Manejo de mulheres em tratamento para hipotireoidismo antes da gestação

Sempre que possível, mulheres com hipotireoidismo e com plano de engravidar devem fazer um controle estrito do TSH, buscando manter ele na metade inferior do intervalo normal para o laboratório, mas acima do limite inferior. Isso significa, para a maioria dos laboratórios, buscar um TSH entre 0,5 e 2,5 mU/L.

Pacientes com hipotireoidismo devem ser educadas pelos seus médicos para que, tão logo identifiquem atraso menstrual ou façam teste de gestação (mesmo que domiciliar) e aumentem da dose da levotiroxina em aproximadamente 30%. Adicionalmente, devem fazer contato com seu médico de referência e, se ainda não confirmado, buscar confirmação do diagnóstico de gestação. Caso a possibilidade de gravidez seja descartada, a dose de levotiroxina pode ser reduzida para os valores usuais.

A estratégia de aumento imediato em 30% é comprovadamente mais eficaz do que aumento gradual. Para mulheres que usam doses diárias fixas (por exemplo, 100 mcg todos os dias), esse aumento pode ser facilmente realizado passando de 7 para 9 comprimidos semanais da levotiroxina (ou seja, em 2 dias da semana, tomar 2 comprimidos). Alternativamente, pode-se calcular a dose semanal e aumentá-la em 20-30%.

Assim como no período pré-concepcional, o alvo é manter o TSH na metade inferior do intervalo normal (TSH entre 0,5 e 2,5 mUI/L). Enquanto fora do alvo, o ajuste deve ser feito em aumentos de 12 a 25 mcg a cada 4 semanas. Também deve-se cuidar para evitar doses excessivas (TSH suprimido), que, por usa vez, também está associado com desfechos materno-fetais adversos. A monitorização laboratorial deve ser feita a cada 4 semanas na primeira metade da gestação (até 16-20 semanas) e, em pacientes com bom controle, pelo menos mais uma dosagem deve ser realizada até a 30 semana de gestacional.

Manejo de mulheres sem diagnóstico ou tratamento antes da gestação

O quadro clínico de hipotireoidismo é semelhante em gestantes e não gestantes, porém deve-se estar atento para não atribuir os sintomas de hipotireoidismo aos sintomas que decorrem da gravidez. Para o diagnóstico, hipotireoidismo primário franco tem a mesma definição na gestação que fora dela (link para hipotirodiso geral), ou seja a presença de TSH acima do limite superior do normal acompanhado de hormônio periférico (T4 livre ou total) reduzido. A questão, como discutido acima, são as definições de “exames normais” a serem utilizadas. Sempre deve-se dar preferência para valores de TSH e T4 livre ajustados para a idade gestacional e população local, mas na falta destes, utiliza-se os ajustes recomendados na Tabela 1. Além disso, mulheres com TSH > 2,5 mU/L na gestação, devem fazer dosagens de auto-anticorpos.

As recomendações de tratamento estão apresentadas na Tabela 2; resumidamente mulheres com hipotireoidismo franco, com TSH acima de 10 mU/L ou com TSH elevado e anti-TPO positivo tem recomendação forte para tratamento. As outras situações são consideradas indicações de tratamento mais fracas e ainda aguardam estudos adicionais que estão sendo conduzidos. Nelas preferências da paciente e do profissional devem ser mais levadas em conta. Pacientes com hipotiroxinemia isolada (TSH normal e T4 total ou livre reduzido) não devem ser tratadas.

Tabela 2. Recomendações de tratamento como levotiroxina na gestação. Adaptado de (1) e (2).

 
TSH Hormônio periférico (considerando referências ou ajustes para gestação) Anti-TPO Decisão
TSH acima da referência para gestação Reduzido Positivo ou negativo Tratamento fortemente recomendado
> 10 mU/L Reduzido ou normal Positivo ou negativo Tratamento fortemente recomendado
Acima da referência para gestação Normal Positivo Tratamento fortemente recomendado
Acima da referência para gestação, mas menor que 10 mU/L Normal Negativo Considerar tratamento
Acima de 2,5, mas abaixo da referência para gestação Normal Positivo Considerar tratamento
TSH dentro da referência para gestação em pacientes com abortamento de repetição Normal Positivo Considerar tratamento
TSH dentro da referência para gestação Reduzido Negativo Tratamento não recomendado

Quanto a dose de tratamento, ela depende do grau de alteração identificado:

  • TSH > 4 mU/L e T4 (total ou livre) reduzido: 1,6 mcg/kg/dia;
  • TSH > 4 mU/L e T4 (total ou livre) normal: 1 mcg/kg/dia;
  • TSH 2,5 a 4 mU/L se for optado tratamento (por anti-TPO positivo): 50 mcg/dia;

Para maiores detalhes na administração do medicamento, recomendamos ver nosso material sobre hipotireoidismo fora da gestação. O seguimento deve ser realizado como apresentado acima, na sessão de mulheres com hipotireoidismo já em tratamento antes da gravidez.

Gestantes sem alteração na função tireoidiana (ou seja TSH e T4 total normais), mas com auto-anticorpos positivos (anti-TPO e/ou anti-tireoglobulina) são um desafio a parte. Sabe-se que essa situação está associada com maior risco de abortamentos. Por outro lado, não está estabelecido se essa relação é causal e como a função tireoidiana está preservada, o uso de levotiroxina as coloca em risco dos efeitos adversos do hipertratamento. Assim, deve-se monitorar o TSH dessas mulheres durante a gestação, iniciando no diagnóstico de gravidez e repetindo a cada 4 semanas até a metade da gestação e após pelo menos uma dosagem com 30 semanas. Por fim, em mulheres com abortamentos de repetição e com anti-TPO positivo pode-se considerar o tratamento com levotiroxina (25-50 mcg/dia). Destaca-se que existe apenas um estudo pequeno que demonstrou benefício para redução de abortamentos e, portanto, o existe elevada incerteza neste ponto.

Rastreamento

Uma questão muito debatida sobre doenças tireoidianas na gestação é a indicação de testagem sistemática - na ausência de suspeita clínica. Dois ensaios clínicos randomizados testaram essa estratégia e não identificaram benefícios. Infelizmente, por limitações metodológicas, o tratamento em ambos estudos começou tardiamente (final do primeiro trimestre). Em função disso, trata-se de um assunto sem resposta definitiva ainda na literatura médica. De todas as formas, mulheres com sintomas de hipotireoidismo, com infertilidade e abortamentos, DM tipo 1, cirurgia ou radiação cervical prévia, bócio e aquelas vivendo em áreas com deficiência de iodo devem ter sua função tireoidianas avaliada na gestação.

Referências:

  1. American Thyroid Association. 2017 Guidelines of the American Thyroid Association for the Diagnosis and Management of Thyroid Disease During Pregnancy and the Postpartum. Thyroid 2017 (27): 315.
  2. Dickens LT, Cifu AS, Cohen. RN. JAMA 2019 (321): 1928.
  3. Hypothyroidism during pregnancy: Clinical manifestations, diagnosis, and treatment. De uptodate, acesso em 09/06/2023, disponível em <https://www.uptodate.com/contents/hypothyroidism-during-pregnancy-clinical-manifestations-diagnosis-and-treatment>

DR

Dimitris Rados

Médico internista e endocrinologista. Mestre e doutor em endocrinologia pela UFRGS. Preceptor do programa de residência médica em medicina interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pesquisador do TelessaúdeRS.