Como citar este artigo: Anjos Filho, N. C. dos & Neufeld, C. B. (2023, 17 jul.). Além do LGBT: um olhar sobre os pacientes QIAP+. Blog Artmed.
A compreensão da sociedade sobre gênero e orientação sexual mudou drasticamente no final do século XX e início do século XXI. A partir do movimento pelos direitos civis gays, que começou simbolicamente com os motins de Stonewall na cidade de Nova York em 1969, as pessoas passaram a se expressar e se identificar a partir de uma diversidade de gênero e orientação sexual.
O gênero, anteriormente considerado estritamente segregado em masculino e feminino, passou a ser compreendido como um espectro de muitas e, às vezes, fluidas possibilidades. De um modo simplificado, a questão não é mais se alguém é homem ou mulher, mas quais são os traços masculinos e femininos que cada uma das pessoas possui. Além disso, foram acrescentados termos como queer, gênero fluido, não binário, intersexo e transgênero para compreender como os indivíduos vivem, amam, trabalham e se divertem.
Ademais, a orientação sexual também evoluiu para contemplar a diversidade de identidade, comportamento e atração sexual. A maioria das pessoas costumava se identificar como heterossexual ou homossexual, mas muitos agora estão adotando as identidades de bissexual, pansexual, assexual e queer.
Atualmente, compreende-se também que o modo como alguém se identifica não implica necessariamente em como se comporta sexualmente ou quais podem ser suas atrações sexuais. Por outro lado, apesar da ampliação da expressão de gênero e sexual individual nos últimos anos, a igualdade e os direitos civis básicos estão longe de serem garantidos para aqueles que são sexualmente diversos. De um modo geral, a sociedade permanece separando as pessoas em categorias, dando maior valor e proteção àquelas que se encaixam na noção “tradicional” do que significa ser humano (Levounis & Yarbrough, 2020).
Especificamente, estudos têm revelado problemas de saúde mental da população LGBTQIAP+ em decorrência da forma que a sociedade é organizada e estruturada. Por exemplo, Moagi et al. (2021) identificaram em uma revisão de literatura que pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais enfrentam os seguintes desafios de saúde mental: sofrimento emocional, estigmatização, vitimização, discriminação e barreiras no acesso aos serviços de saúde. Tais achados parecem estar coerentes com uma outra revisão sistemática da literatura (Plöderl & Tremblay, 2015) que revelou que a maioria dos 199 estudos incluídos evidenciou riscos elevados de depressão, ansiedade, tentativas de suicídio ou suicídios e problemas relacionados a substâncias para homens e mulheres de minorias sexuais (gays, lésbicas e bissexuais).
Além disso, embora todos os subgrupos de minorias sexuais apresentassem risco aumentado para problemas de saúde mental, indivíduos bissexuais apresentavam maior risco na maioria dos estudos. No que se refere aos indivíduos transgênero, eles apresentam altas taxas de sofrimento psicológico (Lobato et al., 2019), transtornos de humor, de ansiedade, por uso de substâncias e relacionados ao estresse, bem como alta prevalência de comportamentos suicidas e autolesão não suicida (Pinna et al., 2022). Por outro lado, poucos estudos têm investigado os indivíduos identificados como queer, intersexo, assexual e pansexual. Confira a seguir algumas considerações sobre cada uma dessas identidades.
Queer
Mais do que uma orientação sexual, usa-se queer frequentemente para se referir de forma genérica a toda a comunidade LGBTQIAP+. É um termo que nasceu da resistência contra a homofobia, ou seja, uma identidade politicamente carregada que sinaliza uma resistência à heteronormatividade (sistema de pensamento que perpetua a crença de que a heterossexualidade é normal e que a estranheza é patológica). Nesse sentido, uma identidade queer comunica que alguém não se identifica como heterossexual sem identificar seu gênero ou os gêneros das pessoas que deseja (Levounis & Yarbrough, 2020).
Intersexo
As variações intersexuais, também conhecidas como Diferenças de Desenvolvimento Sexual, abrangem um conjunto diversificado de diferenças congênitas relacionadas a gônadas, cromossomos e órgãos genitais que ficam fora das noções binárias típicas de sexo masculino e feminino. Indivíduos intersexuais podem ser identificados no útero, no nascimento, na infância ou na idade adulta, e alguns podem permanecer sem diagnóstico (Levounis & Yarbrough, 2020; Rosenwohl-Mack et al., 2020). Independentemente de se identificarem ou não como parte da população LGBTQIAP+, geralmente constituem um grupo invisível e esquecido. Um estudo (Rosenwohl-Mack et al., 2020) com 198 adultos intersexuais, residentes nos Estados Unidos, revelou que 53% dos participantes relataram saúde mental regular/ruim com alta prevalência de sintomas depressivos e ansiosos, bem como aproximadamente um terço da amostra relatou dificuldades com tarefas cotidianas e mais da metade relatou dificuldades com tarefas cognitivas.
Ademais, ressalta-se que o termo intersexo é geralmente evitado por causa de sua imprecisão médica e nosológica. Ao mesmo tempo, a sensibilidade cultural pode auxiliar para reconhecer que algumas pessoas da comunidade preferem o termo intersexo como forma de reivindicar o empoderamento da identidade (Levounis & Yarbrough, 2020).
Assexual
A assexualidade humana é definida como a ausência de atração sexual por outras pessoas (Zheng & Su, 2022). Indivíduos assexuais podem enfrentar um estigma social semelhante ao vivenciado por homossexuais e bissexuais, na medida em que também podem sofrer discriminação e/ou marginalização e experimentar taxas mais altas de distúrbios psiquiátricos. Além do estigma de pertencer à comunidade LGBTQIAP+, há um estigma adicional por causa da experiência de falta de atração sexual em uma cultura que é dominada pela sexualidade, ou seja, que implica que o sexo é positivo, saudável e desejável, e os indivíduos que não estão interessados na sexualidade são percebidos como portadores de distúrbios ou pessoas que possuem algo “errado” (Levounis & Yarbrough, 2020; Rothblum, 2020; Yule et al., 2013). Estudos como o de Yule et al. (2013) reforçam tal compreensão. Especificamente, os autores revelaram dados de que os homens assexuais obtiveram pontuações mais altas em medidas de somatização, depressão e psicoticismo do que os homens não heterossexuais. Além disso, as mulheres assexuais obtiveram pontuações mais altas em medidas de ansiedade fóbica e psicoticismo do que as mulheres heterossexuais. Outro achado constatado por Yule et al. (2013) foi de que homens e mulheres assexuais pontuaram significativamente mais alto em itens que avaliaram a tendência suicida em comparação aos indivíduos heterossexuais.
Pansexual
A pansexualidade pode ser compreendida como abrangendo indivíduos que sentem que são sexualmente, emocionalmente e espiritualmente capazes de sentir atração por qualquer pessoa, independentemente de gênero ou sexo (Belous & Bauman, 2017). Os indivíduos pansexuais estão abertos a relacionamentos e sexo com pessoas com as quais se sentem conectadas. Conexão e atração não são determinadas principalmente pelo gênero ou sexo de um parceiro em potencial. Cada pessoa pansexual determina o que precisa para se sentir conectada a alguém (Levounis & Yarbrough, 2020).
Conforme apresentado, são evidente as disparidades de saúde mental entre pessoas com orientações sexuais e identidades de gênero minoritárias. As pessoas que pertencem a qualquer tipo de grupo minoritário sofrem de estresse único relacionado à sua marginalização, incluindo discriminação, expectativa de discriminação e estigma internalizado. No que se refere à comunidade LGBTQIAP+ também se incluem estressores de discriminação cotidiana (por exemplo, microagressões), expectativa de rejeição, autodesvalorização por causa da homofobia/transfobia internalizada e outras formas de estigmatização (Wittgens et al., 2022).
O Modelo de Estresse Minoritário explica como os diversos estressores impactam potencialmente na saúde mental de pessoas com identidades sexuais e de gênero minoritárias. Desse modo, podem ser classificados dois tipos de estresse: 1) estresse distal, que envolve experiências externas de discriminação (p. ex., discriminação e violência, incluindo do tipo verbal, físico e social); e 2) estresse proximal, que está relacionado ao estresse vivenciado internamente, independentemente de ter vivenciado a discriminação diretamente (p. ex., como expectativas negativas para o futuro, estigma internalizado e transfobia internalizada) (Meyer, 2003).
Como proposta de intervenções e cuidado, existem as abordagens afirmativas centradas no cliente para os indivíduos de grupos minoritários sexuais e de gênero. Tais abordagens (Austin & Craig, 2015, 2019; Carvalho et al., 2022):
(1) Validam os pontos fortes e experiências de indivíduos LGBTQIAP+, promovendo autonomia e resiliência;
(2) Veem a atração pelo mesmo sexo e a diversidade de gênero como variações de experiências humanas saudáveis - reconhecendo assim que a atração pelo mesmo sexo e a diversidade de gênero não são inerentemente patológicas e descartam/rejeitam esforços clínicos para mudar essas experiências;
(3) Incorporam conhecimento sobre aspectos culturais e de desenvolvimento específicos de ter uma identidade GSM;
(4) Reconhecem as fontes de estresse da minoria (por exemplo, normas culturais, preconceito, discriminação, violência) como principais contribuintes do sofrimento psicológico na comunidade LGBTQIAP+ e promovem habilidades eficazes para lidar com estressores relacionados a minorias; e
(5) Exigem que o clínico realize uma autoavaliação das suas atitudes pessoais frente a questões relacionadas à diversidade de orientação sexual e identidades de gênero.
Uma das principais abordagens é a TCC-Afirmativa (Austin & Craig, 2019). Nesta, é conduzida pelo terapeuta uma avaliação completa sobre o papel que o estresse minoritário desempenha na etiologia dos problemas de saúde mental do cliente. Essa avaliação cuidadosa implica em não subestimar o estresse minoritário (p. ex., ignorá-lo e focar estritamente em padrões cognitivos e comportamentais individuais) ou enfatizá-lo excessivamente (p. ex., assumir que os fatores predisponentes ou perpetuadores das dificuldades de saúde mental de um cliente devem estar enraizados em sua orientação sexual e/ou identidades de gênero). Desse modo, para alguns clientes, suas dificuldades de saúde mental podem estar diretamente relacionadas às suas identidades sexuais e de gênero (por exemplo, uma pessoa trans que exibe sinais de transfobia internalizada e vergonha por não se passar por cisgênero) (Carvalho et al., 2022).
Uma das ações que o terapeuta da TCC-Afirmativa deve realizar é abordar a LGBTQIAP+fobia internalizada. De acordo com Carvalho et al. (2022), seguem algumas orientações para o processo de avaliação:
- Validar a luta e a experiência emocional, mas procurar conceituá-la como resultante de um contexto externo de LGBTQIAP+fobia (os sintomas são os melhores esforços de adaptação do paciente).
- Se os clientes apresentarem níveis elevados de LGBTQIAP+fobia internalizada, o terapeuta deve se certificar de avaliar o aumento do abuso de substâncias e comportamentos sexuais de risco (ou vice-versa).
- Ajudar os clientes a reconhecer sua LGBTQIAP+fobia internalizada, bem como seu impacto nos problemas atuais de saúde mental e nas dificuldades gerais da vida.
- O terapeuta deve estar atento aos seus próprios preconceitos baseados na orientação sexual e identidade de gênero. A terapia não deve ser um contexto de microagressões e discriminação, mas sim de aceitação, compaixão e sensibilidade cultural.
- Explorar consequências não intencionais (em curto, médio e longo prazos).
- Facilitar a justificativa para o tratamento (por exemplo, aprendizagem de medos condicionados).
- Explorar a função dos sintomas como resultado dos esforços do paciente para lidar com a adversidade.
- Facilitar a compreensão entre as experiências de aprendizagem passadas (por exemplo, não revelação da orientação sexual e/ou da identidade de gênero, contexto social homofóbico e/ou transfóbico) e ambivalências e lutas atuais (por exemplo, "eu me desprezo", "eu gostaria de ser diferente". "Se eu fosse hétero, a vida seria mais simples").
Editoria de Psicologia
Editora-chefe: Carmem Beatriz Neufeld. Psicóloga. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Associação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas - ALAPCO (2019-2022). Presidente da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023).
Referências:
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Austin, A., & Craig, S. L. (2019). Transgender Affirmative Cognitive– Behavioral Therapy. In J. E. Pachankis & S. A. Safren (Eds.), Handbook of Evidence-Based Mental Health Practice with Sexual and Gender Minorities (pp. 74–96). Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/med-psych/9780190669300.001.0001
Belous, C. K., & Bauman, M. L. (2017). What’s in a Name? Exploring Pansexuality Online. Journal of Bisexuality, 17(1), 58–72. https://doi.org/10.1080/15299716.2016.1224212
Carvalho, S. A., Castilho, P., Seabra, D., Salvador, C., Rijo, D., & Carona, C. (2022). Critical issues in cognitive behavioural therapy (CBT) with gender and sexual minorities (GSMs). The Cognitive Behaviour Therapist, 15(e3), e3. https://doi.org/10.1080/15299716.2016.1224212
Levounis, P., & Yarbrough, E. (2020). Pocket Guide to LGBTQ Mental Health: Understanding the Spectrum of Gender and Sexuality. American Psychiatric Association Publishing.
Lobato, M. I., Soll, B. M., Costa, A. B., Saadeh, A., Gagliotti, D. A. M., Fresán, A., Reed, G., & Robles, R. (2019). Psychological distress among transgender people in Brazil: Frequency, intensity and social causation – an ICD-11 field study. Brazilian Journal of Psychiatry, 41(4), 310–315. https://doi.org/10.1590/1516-4446-2018-0052
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Pinna, F., Paribello, P., Somaini, G., Corona, A., Ventriglio, A., Corrias, C., Frau, I., Murgia, R., El Kacemi, S., Galeazzi, G. M., Mirandola, M., Amaddeo, F., Crapanzano, A., Converti, M., Piras, P., Suprani, F., Machia, M., Fiorillo, A., Carpiniello, B., & The Italian Working Group on LGBTQI Mental Health. (2022). Mental health in transgender individuals: a systematic review. International Review of Psychiatry, 34(3–4), 292–359. https://doi.org/10.1080/09540261.2022.2093629
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Rosenwohl-Mack, A., Tamar-Mattis, S., Baratz, A. B., Dalke, K. B., Ittelson, A., Zieselman, K., & Flatt, J. D. (2020). A national study on the physical and mental health of intersex adults in the U.S. PLoS ONE, 15(10), e0240088. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0240088
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Wittgens, C., Fischer, M. M., Buspavanich, P., Theobald, S., Schweizer, K., & Trautmann, S. (2022). Mental health in people with minority sexual orientations: A meta-analysis of population-based studies. Acta Psychiatrica Scandinavica, 145(4), 357–372. https://doi.org/10.1111/acps.13405
Yule, M. A., Brotto, L. A., & Gorzalka, B. B. (2013). Mental health and interpersonal functioning in self-identified asexual men and women. Psychology and Sexuality, 4(2), 136–151. https://doi.org/10.1080/19419899.2013.774162
Zheng, L., & Su, Y. (2022). Sexual Minority Identity and Mental Health Among Individuals on the Asexuality Spectrum in China: A Longitudinal Study. Archives of Sexual Behavior, 51(7), 3627–3636. https://doi.org/10.1007/s10508-022-02395-4