Como citar este artigo: Rodrigues, W. S., & Neufeld, C. B. (2023, 23 jan.). Seu paciente é perfeccionista? Aprenda a reconhecer alguns sinais. Blog Artmed.
No cotidiano, eventualmente classificamos os outros (e até nós mesmos) como perfeccionistas. De uma forma geral, podemos encontrar o termo sendo usado em dois sentidos: num primeiro, com um significado positivo, chamamos de perfeccionistas aqueles que se dedicam e esforçam para alcançar metas ( “ela é perfeccionista, certamente conseguirá aquela vaga”), e num segundo, em uma representação negativa, referindo-se às pessoas pouco flexíveis e que cobram em excesso (“meu chefe é tão perfeccionista, nunca tira férias e não aceita falhas, é insuportável trabalhar com ele”).
Ao longo de mais de três décadas, os pesquisadores em Psicologia buscaram investigar sobre o perfeccionismo, compreendendo seus aspectos desenvolvimentais, estruturais e desdobramentos em diferentes âmbitos da vida (Flett & Hewitt, 2020).
Um dos primeiros pontos a se observar é que se trata de um fenômeno dimensional, ou seja, as pessoas podem ter níveis diferentes dessa característica (assim, na prática clínica, podemos avaliar que um indivíduo possui nível baixo, moderadamente baixo, moderadamente alto ou alto de perfeccionismo).
Além disso, o perfeccionismo é comumente definido por três pontos principais (Stoeber, 2018), a saber:
- estabelecimento de altos padrões de desempenho: os indivíduos estabelecem metas elevadas, que muitas vezes podem ser irrealistas (desconsiderando o prazo ou as habilidades necessárias para executar a tarefa);
- críticas severas voltadas ao desempenho: as pessoas com níveis mais elevados de perfeccionismo tendem a estabelecer críticas negativas e inflexíveis, que podem ser voltadas para si (ex.: “se eu não me sair bem na prova, significa que sou um fracasso”) ou para as outras pessoas (ex.: “esse trabalho está horrível, fulano só pode ser idiota”);
- busca por evitar falhas e erros: trata-se de uma baixa tolerância para erros, pois são compreendidos como sinônimo de fracasso. Assim, os indivíduos podem se engajar em comportamentos contraproducentes, como conferir o trabalho inúmeras vezes e até mesmo procrastinar.
Até aqui, você pode estar se perguntando se ser perfeccionista é algo bom ou ruim. Bem, a resposta é bastante complexa, mas podemos compreender que se trata de um paradoxo: por um lado, estabelecer metas e se esforçar para alcançá-las pode ser bastante positivo, ao passo que despender um esforço intenso, estabelecer críticas elevadas e evitar erros a todo custo pode trazer sérias consequências.
Para ilustrar os sinais e desdobramentos dessa disposição da nossa personalidade, trouxemos alguns exemplos retratados na arte cinematográfica! Listamos duas indicações para você compreender melhor sobre essa característica:
Whiplash (2014)
O filme escrito e dirigido por Damien Chazelle narra a história de Andrew Neiman, um estudante de percussão de um conservatório dos Estados Unidos. Terence Fletcher, professor do conservatório, é extremamente exigente com seus alunos e está à procura de músicos para a banda. O professor recruta Andrew, que até então era baterista reserva em sua turma. Andrew se vê constantemente desafiado por Terence para alcançar uma alta performance. Apesar das consequências, o aluno se esforça intensamente para atingir as metas estabelecidas pelo professor.
Spinning Out (2018)
Criada por Samantha Stratton, a série conta a história de Kat Baker, uma patinadora profissional que teve um grave acidente durante uma competição. A personagem sofre com as lembranças desse acontecimento, o que dificulta o seu retorno para a prática do esporte. Além do enfoque para a importância da saúde mental no contexto esportivo, a série retrata conflitos interpessoais, que contribuem para o surgimento e permanência de sintomas psicopatológicos.
As duas produções cinematográficas apresentam personagens com níveis elevados e desadaptativos de perfeccionismo. Utilizando-as como referências, listamos abaixo alguns dos aspectos centrais dessa característica, que podem auxiliar no processo de avaliação e conceitualização dos casos em sua prática clínica.
1. O perfeccionismo é uma característica transdiagnóstica
Os estudos em Psicologia indicam que o perfeccionismo colabora para a etiologia e manutenção de diferentes sintomas e transtornos psicopatológicos. Ou seja, essa característica se configura como um fator de vulnerabilidade para o desenvolvimento e permanência de outros sintomas (Egan et al., 2011). Em Spinning Out, podemos ver que Kat Baker se envolve em comportamentos autolesivos como forma de regular suas emoções e pensamentos após falhas em seu desempenho e como estratégia para lidar com as críticas vindas de si e dos outros.
Já em Whiplash, observamos que o ritmo de cobrança e esforço de Andrew Neyman pode acarretar uma grande exaustão, tanto física quanto psicológica. Como indicado por estudos anteriores, o estresse constante pode colaborar para o desenvolvimento de psicopatologias como o Transtorno do Estresse Pós-Traumático e o Burnout (Meleiro & Rocha, 2021; Ventura et al., 2021).
Quer se aprofundar no assunto? Acesse gratuitamente este e-book sobre a síndrome de burnout e suas consequências no mercado de trabalho.
2. O perfeccionismo afeta as relações
Os indivíduos com níveis mais elevados de perfeccionismo tendem a apresentar uma desconexão social, ou seja, podem ter maiores dificuldades em estabelecer e manter vínculos sociais. Por exemplo, eles podem constantemente abrir mão de encontros e reuniões com amigos e familiares em prol do desempenho em tarefas (como para realizar atividades acadêmicas e profissionais), deixando as interações sociais em segundo plano. Ainda, em função das críticas e cobranças em excesso, torna-se desafiadora a criação de bons vínculos sociais.
Em Spinning Out, Carol Baker demonstra em alguns momentos um afeto condicionado ao desempenho adequado de suas filhas. Ou seja, Carol somente demonstra carinho quando Serena e Kat desempenham perfeitamente a patinação no gelo, ao passo que erros são punidos severamente. Em Whiplash, observa-se que Terence Fletcher não possui uma boa relação com Andrew Neyman, em função da cobrança pelo desempenho perfeito e pelas constantes críticas.
3. É difícil abandonar os padrões perfeccionistas
Apesar dos desfechos desadaptativos, os indivíduos perfeccionistas tendem a manter os padrões elevados (ou até mesmo a aumentá-los!). Por exemplo, podem avaliar que não alcançaram a meta estabelecida por não terem despendido esforço o suficiente, em vez de considerarem outros aspectos.
De uma forma geral, a busca por psicoterapia se dá para lidar com os desdobramentos desadaptativos advindos do perfeccionismo, como a procrastinação, os conflitos interpessoais, sintomas ansiosos e depressivos, etc. Entretanto, estabelecer metas mais realistas raramente se configura como objetivo inicial trazido pelos pacientes. Em Whiplash, apesar do sofrimento gerado pela busca pela perfeição, Andrew ainda insiste em continuar com seus planos, e quando comete falhas, conclui que se esforçou o suficiente.
Editoria de Psicologia
Editora-chefe: Carmem Beatriz Neufeld.
Psicóloga. Livre docente em TCC pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora e Mestra em Psicologia pela PUCRS. Fundadora e Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Federação Latino Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO (2019-2022). Presidente-fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023). Bolsista Produtividade do CNPq.
Referências:
Egan, S. J., Wade, T. D., & Shafran, R. (2011). Perfectionism as a transdiagnostic process: a clinical review. Clinical Psychology Review, 31(2), 203–212. doi:10.1016/j.cpr.2010.04.009
Flett, G. L., & Hewitt, P. L. (2020). Reflections on Three Decades of Research on Multidimensional Perfectionism: An Introduction to the Special Issue on Further Advances in the Assessment of Perfectionism. Journal of Psychoeducational Assessment, 38(1), 3-14. doi:10.1177/0734282919881928
Meleiro, A. M. A. S., & Rocha, R. (2021). Síndrome de burnout. In Associação Nacional de Medicina do Trabalho, Rocha, R., & Fernandes, F.C. (Orgs.). PROMEDTRAB Programa de Atualização em Medicina do Trabalho: Ciclo 3. (pp. 95-147). Porto Alegre: Artmed Panamericana. (Sistema de Educação Continuada a Distância, v. 3).
Stoeber, J. (2018). The psychology of perfectionism: Theory, research, applications. Routledge/Taylor & Francis Group. doi:10.4324/9781315536255
Ventura P., Vieira C., & Alencar J. (2021). Tratamento cognitivo-comportamental do transtorno de estresse pós-traumático em adultos. In Federação Brasileira de Terapias Cognitivas, C. B. Neufeld, E. M. O. Falcone & B. P. Rangé (Orgs.), PROCOGNITIVA Programa de Atualização em Terapia Cognitivo-Comportamental: Ciclo 8 (pp. 81–102). Porto Alegre: Artmed Panamericana. (Sistema de Educação Continuada a Distância, v. 1). doi:10.5935/978-65-5848-285-7.C0005